domingo, 21 de abril de 2013

Episódio 6

A Proposta do Conde
Finalmente Ana se deixou cair em desespero. Passou pela porta da cozinha e saiu para a varanda, respirou o ar frio da noite e emitiu aquela doce nuvem de fumaça no ar gélido da noite que se iniciava. À sua direita repousava, exibicionista, o cavalete orgulhoso que segurava o novo quadro pintado por Alexia. Se o cavalete fosse uma pessoa, se sentiria completamente desapontado por ter sido ignorado por Ana, que desceu as escadas com lágrimas nos olhos e uma pedra na garganta. A mulher abriu o portão do pequeno cemitério com um empurrão, e a intensidade desse gesto lhe trouxe, finalmente, a pedra que segurava na garganta à tona. E as lágrimas desceram como rios. Se a lápide do homem à sua frente fosse o homem à sua frente, este não se decepcionaria pela bela paisagem que o rosto de Ana conseguia ser naquele momento. Quando sorria, era o seu sorriso diamante, resplandescente como um dia de sol fresco e encantador, e quando chorava, tinha o poder e a beleza selvagem e firme de um cenário de cachoeiras em um dia de primavera.
Sem dar a mínima para o cemitério, olhando apenas, e apenas mesmo por um milésimo de segundo para a lápide de seu marido falecido, ela virou à esquerda e desceu até o porão para preparar um drink para si.

Enquanto pegava, na prateleira por detrás do bar, a garrafa contendo o líquido verde, fosforescente e tremulante assistidos por detrás de seus graciosos olhos encharcados, percebeu, que o quarto do mordomo, - cujo nome não se lembrava e, por incrível que pareça, ela tentou, mesmo naquela situação, para sua surpresa, - ficava do outro lado da escada. Foi por um segundo, sua mente já estava prestes a voltar a atenção para a bebida que estava prestes a preparar quando a percepção de que o mordomo não estava em sua cama tomou conta de sua atenção.
- Onde está esse maldito? - perguntou Ana em voz alta, com raiva, mas num fio de voz choroso.
Uma voz atrás dela respondeu a pergunta, imediatamente:
- Com a filha dele.
Houve uma pausa dramática, assustadora, frustrante para Ana, mas saborosa para o dono da voz grave atrás dela.
Ela não se delongou a se virar, como geralmente as pessoas fazem nos filmes que ela gostava de assistir quando criança. Ela se virou, normalmente, logo após receber a resposta do estranho e seus olhos enquadraram algo sinistro. Ainda mais sinistro por causa das lágrimas que ainda borravam a sua visão. Uma forma cinza escura, quase completamente negra, projetava-se da escuridão que revestia o restante do porão. Uma forma cinza, brilhosa, mesmo assim, apagada, como que rasgada e encardida, como um velho pano de chão sujo que se aproximava flutuando.
- O que disse?
Ana segurava a garrafa em sua mãos trêmulas e sustentava um olhar firme e sóbrio diretamente para a forma que vinha se aproximando, agora mais devagar.
- Eu aceitaria um drink. Ou, simplesmente uma bela dose daquela garrafa branca ali, sabe? Se ela não fosse passar por mim como água transpassa fumaça.
Disse a forma, com sua voz grave, carregada de amargura seca e enferrujada.
  - O que o senhor faz em minha casa? - perguntou Ana, recomeçando a chorar. - Vá embora, por favor!
- Não posso. - respondeu, sinceramente, quase a desculpar-se.
Ana pegou a taça embaixo do bar, encheu-a do líquido verde, contando até cinco, pois sabia que cinco segundos daquele dosador equivaleria à uma dose de aproximadamente quarenta e cinco ml da bebida, oque era o suficiente para um começo promissor em sua decadência emocional repentina.
- A senhora não é fantasma - fez uma pausa, com um sorriso macabro que se sobressaiu na ligeira claridade que contrastava com o fundo de completa escuridão. O sorriso pairou bem na frente de Ana, que se assustou, e o fantasma completou - mas sendo o que a senhora é, essa quantidade não lhe fará nem cócegas nos ânimos.
Desgostosa, afinal ela não suportava dar razão àquela criatura que tinha razão - aliás, ela jamais gostou de dar razão à qualquer um que tivesse razão quando ela cai na tentação, ou na fraqueza, de não ter razão - ela abandonou a pequena taça cintilante no balcão do bar e contornou-o com firmeza no olhar e perseverança no trago que sorveu da garrafa. Pairou assustadoramente diante de seu companheiro indesejável.
- Senhora Alves II, não sou inimigo. Posso talvez, ser inconveniente, mas isso é devido à minha maldição de vagar pelas bandas por onde tive o desprazer de falecer.
Desculpou-se o fantasma. Agora que as lágrimas se secaram, Ana podia ver claramente que na sua frente, pairava o fantasma que encontrara em sua varanda anteriormente.
- Porque o... o... aquele... - parou para respirar e sentir a bebida fazer seu efeito e recomeçou, - Por que motivo nosso mordomo está no quarto de minha filha. Eu não sou de meias palavras e nem um pouco tolerante... quando estou intolerante! Senhor.
Conde Snypes riu.
- Não. Foi um mal entendido. O homem que está no quarto de sua filha é seu falecido marido. Ele não cansa de olhá-la enquanto dorme, e quem poderia culpá-lo. Sua filha é uma preciosidade, com todo o respeito, e ele é um homem muito sensível. E, é claro... é filha dele!
Ana estava com apenas um quarto do conteúdo dentro da garrafa balançando em suas mãos ainda trêmulas, até menos.
- Meu marido? - perguntou, chorando.
  - Sim, senhora.
Conde Snypes deixou pairar o silêncio, dominando-o da forma que podia, sustentando Ana com o olhar, para que ela lhe desse a chance de prosseguir antes de dizer algo mais. Contudo, Snypes era uma alma antiga e conhecia as pessoas, sabia que ela não falaria mais nada antes que ele pudesse se pronunciar.
- A senhora devia trazê-lo de volta. - disse, sustentando um olhar firme, sincero e grave.
- Como? - perguntou Ana, de supetão.
Snypes sorriu. O que foi um leve erro, pois, Ana, apesar de ser uma alma jovial e animada, apesar de resoluta e desafiadora, tinha a mania de se manter na defensiva quando atacada por um sorriso que ameaçava sua fraqueza. O fantasma de Snypes já havia aprendido isso e, por um segundo lamentou o erro, mas, no mesmo segundo, soube que era uma velha e desgastada alma que podia se permitir errar. Entretanto, consertou seu engano à tempo. Quando Ana abriu os lábios para dizer algo, desarmou seu sorriso e disse:
- É difícil, mas posso ensiná-la!
Trocaram olhares.
- Vou ensiná-la.
Afirmou.
- Mas com uma condição, querida. - se deixou errar e sorrir novamente. Sabendo que seu erro, sequer seria percebido pela outra, pois a outra, sem dúvidas, estava embriagada pela informação esperançosa recebida.
Pondo a garrafa vazia no balcão, sonoramente, Ana perguntou, com a língua enrolada e rastejante:
- O que você quer?
- O mesmo que ele. - sorriu, sentado no segundo degrau da escada.
Ana contornou o bar resoluta, agressiva e transpassou o fantasma, que, na verdade, até assustou-se. Não esperava aquilo. A moça subiu as escadas, pisando alto nos degraus, olhando friamente o túmulo de seu marido. Saiu do pequeno cemitério domiciliar e foi até o quarto da filha. Satisfatoriamente embriagada abriu a porta do quarto da filha, sem o menor cuidado, fazendo Alexia sobressaltar-se e lhe lançar um olhar macabro. Um par de pérolas cor de mel brilhavam no escuro, pairando perante o rosto lindo e inocente que iluminavam. Ana vasculhou o quarto com o olhar e nada viu que fosse estranho.
- Desculpe, filha.
- Está desculpada, mãe. - respondeu Alexia, fria, mas sincera.
Cautelosamente, Ana fechou a porta do quarto da menina e endereçou-se à seu próprio aposento de dormir.
A choradeira de Ana era interminável, e isso era tão agradável agora. Sentindo-se embriagada, leve, liberta dentro da própria prisão, ela soluçava chorando e rindo ao mesmo tempo. Contida, para não perturbar Alexia no quarto ao lado. Não iria tomar banho, apenas iria deitar-se e ficar olhando a lua pela janela até adormecer. Pensando em como seria divertido, errante, agradável, lindo e impossível, sentar na beira da calçada com o fantasma de Ulisses e passar a madrugada conversando sobre a vida e a morte, os velhos tempos e os novos tempos, as pessoas e os insetos. Ela lembrou-se de que tinha se esquecido de como era gostoso discutir com ele tudo aquilo que eles não concordavam, e eles não concordavam em quase nada, ela sorriu.
O brilho da lua banhava seu rosto, mas um brilho diferente alcançava o pé de sua cama e subia até onde ficava seu umbigo, por detrás de todo aquele cobertor. Mais desapontada que surpresa, Ana percebeu que uma fantasma balançava lentamente em sua cadeira de balanço de leitura, diante da lareira que ladeava a estante de livros de autores que não eram da família. Ana suspirou.
- Eu sou uma fantasma, Ana. Minhas primeiras palavras, sempre serão, inevitavelmente, dramáticas. Seja lá o que eu disser, sentada aqui dessa cadeira balançante...
- Eu entendi! - interrompeu Ana, sem paciência. - A senhora precisa de algo, ou eu posso dormir agora?
A fantasma, de alguma forma, suspirou. E Ana percebeu.
- A senhora precisa de alguma coisa, também, senhora...?
Sem responder, a fantasma levantou-se da cadeira que fazia balançar e flutuou até perto da porta do quarto.
- Não confie demasiadamente em Snypes, Ana.
Após um olhar de pena, desceu suas pálpebras brilhosas sobre seus olhos, virou-se e atravessou a porta do quarto de Ana como se fosse um portal.




"Não sei. Se aquele abismo e o que ele continha eram reais, não resta nenhuma esperança. Então, com toda certeza, paira sobre este mundo do homem uma zombeteira e incrível sombra fora do tempo."
(H.P. Lovecraft, em A Cor que Caiu do Céu) 



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