terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Episódio 7 - Season Finale


Criaturas Importadas

  O dia estava muito quente e a música muito alta. O grave fazia tremer a janela do escritório. Ulisses estava sentado escrevendo. Ele não estava tão disposto para escrever como antes de morrer. Não gostava das linhas que digitava no computador, mas insistia. Já estava cansado, inclusive, de escrever coisas boas. Queria simplesmente escrever, escrever por escrever, dizer por dizer, sem fazer-se entender. A sua bebida já estava quente, mas ele não se importava. Sentiu vontade de ligar sua vitrola, mas a música que vinha do vizinho da frente iria sobrepor-se ao seu som, então desistiu. A música do vizinho, no entanto, não era ruim. Era uma eletrônica lenta que estava na moda. Música de jovens na madrugada.
No andar debaixo, Ana assistia um filme de ficção científica em que humanos invadem e destroem toda uma raça alienígena que vivia quase em paz em um planeta distante. Bebia suco de plasma bem gelado e reclamava do calor que a fazia suar desconfortavelmente. Ela e Ulisses estavam muito distantes um do outro e isso a incomodava quando não estava se distraindo com trabalho ou televisão. Fazia um tempo que não lia um bom livro, aliás. Coisa da qual sentia muita falta. Mas se fosse ler algo, muito provavelmente só iria ler os livros de seu marido, coisa que não gostaria de fazer, pois, ironicamente, reforçava a distancia entre os dois.
 
- Não, obrigada. - respondeu Alexia, recusando a bebida alcoólica gelada oferecida por seu avô.
- Mas sua mãe disse que você gosta, bichinha.
- Ah, vô. Eu até gosto, mas eu só bebo anti socialmente.
- E como é isso, menina? Beber sozinha não presta. Faz mal.
- Faz nada, vô. É até melhor.
- Isso é deprimente. Isso sim.
Opinou sua avó, do outro lado da sala, onde costurava a bainha de uma calça do marido.
Alexia estava na casa de seus avós, pois já estava cansada de alternar entre ficar sozinha, bebendo e pensando demais em tudo que a ignorava, ou aguentando o silêncio emocional entre seus pais. Ana e Ulisses não ficavam juntos, sempre faziam as coisas sozinhos e quando se falavam, pareciam dois desconhecidos um para o outro, aos olhos de Alexia.
Quando anoiteceu, Alexia pediu seu avô que a levasse em casa. Ao chegarem lá, Ulisses ainda estava no escritório e Ana em lugar nenhum da casa. Alexia perguntou ao seu pai onde estava sua mãe, afinal ela não costumava sair de noite.
- Sei lá. Acho que foi pra China. - respondeu seu pai, sem tirar os olhos da tela e sem parar de digitar.
- Quê? - perguntou Alexia. Quase perplexa, mas não muito, pois sabia que coisas estranhas viviam acontecendo na sua família.
- Ela vai entrar em contato em breve. Eu acho. - disse Ulisses.
- Tá bom, fazer o que. - disse Alexia, virando-se e despedindo-se de seu pai para ir dormir.

Quando chegou em Shang Simla, Ana foi do aeroporto até o hotel de bicicleta, feliz da vida. Contente como não se lembrava de estar há décadas. Uma atitude impulsiva! Era disso que ela precisava para se manter livre. Quando chegou ao hotel, ligou para casa e falou com Ulisses que havia chegado bem e que estava muito feliz. O que já estava bastante evidente em sua voz.
Quando o dia amanheceu, Alexia foi sonolenta até a cozinha, esfregando o olhos. Levou um susto quando viu o fantasma de uma senhora fritando ovos.
- Que isso? - disse.
- Cruz credo! - respondeu a fantasma, deixando as chamas subirem na frigideira com uma explosão.
- Desculpe.
Completou a fantasma, e começou a chorar.
- Espere. Vai deixar os ovos queimando?
- Oh, céus! Desculpe, desculpe, desculpe. - respondeu a senhora fantasma, chorando mais ainda.
- Não, senhora. Não foi o que eu quis dizer. Não tem problema, deixa que eu termino pra senhora.
Cibelle foi se afastanda e dizendo:
- Muito obrigada. Você é um doce de menina. Me desculpe. Obrigada...
A fantasma flutuou para trás até atravessar a parede dos fundos da cozinha e desaparecer.
- Que loucura. - disse Alexia. - É loucura que não acaba mais.

Da janela do banheiro do último andar, Ulisses assistia o fantasma de Cibelle flutuar curvado pelo gramado até mergulhar em sua lápide no cemitério.








 - Bebei, filho.
 - Instintivamente Hugo levou sua mão até onde repousava um copo de uísque. Hugo obedeceu, com alegria, a ordem do Senhor. Tomou um gole e ficou olhando para Deus com grande expectativa.
- Eu vou esperar você ficar bêbado. Só assim conseguirás conversar direito.
(trecho de Esquimolândia - A Vingança, de Ulisses Alves)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Capítulo 6


Criaturas Importadas

  Do escritório dava para ouvir os barulhos da casa em frente. A prataria que se estilhaçava, os gritos abafados pelas janelas fechadas, o armário antigo e pesado que caiu. Alexia acordou assustada e olhou pela janela, para a casa do vizinho. Os gritos ficaram ainda mais evidentes quando uma das janelas da casa explodiu, desintegrando a vidraça. Alexia correu para longe de sua janela, e ficou parada no outro canto do quarto. No andar de cima, Ulisses observava calmamente a bagunça na casa do vizinho. Tentou voltar a escrever, ignorando a situação ao lado, mas não conseguiu se concentrar. Suspirou então e ficou da janela, imaginando o que poderia estar acontecendo. Achou muito interessante a explosão da janela e não conseguiu conter sua imaginação. Sabia que podia contar com as pessoas, muito embora não as suportasse. Portanto, convenceu-se de que sua consciência estava limpa e ficou ali sentado, na sua confortável cadeira de escritório assistindo o desenrolar da história, sem dúvidas algum vizinho ligaria para a polícia, disso Ulisses tinha certeza. Ulisses também não pode evitar um sorriso torto ao lembrar que podia sempre contar com o pavor previsível que acometia as pessoas em situações como aquela.
Na casa em frente, a coisa estava feia. Marcos José corria de lá para cá, com uma criatura verde e nojenta em seu encalço. O bicho desconhecido, se parecia levemente com um anão raquítico, fluorescente. Era muito veloz, mas, para a sorte de Marcos e Viviana, a criatura era extremamente destrambelhada. A casa estava completamente destruída. Viviana levou as mãos ao rosto e sacudiu a cabeça, lamentando profundamente sobre os destroços do grande armário com as cinzas de gerações e gerações de sua família. Marcos José, quando conseguiu despistar a criatura que lhe perseguia, sacudiu a cabeça apavorado com o estado de sua sala de estar. Metade da TV estava apoiada no sofá, a metade da outra metade balançava debilmente pendurada no pequeno pedaço do lustra que ainda jazia pendurado no teto rachado.
- Eu disse para você não deixar a louça acumular, Viviana! Mas que droga! Porque não lava a porcaria da louça?
- Ah, vai tomar...
O grito esganiçado da criatura a interrompeu. os olhos felinos da criatura, sem pupilas, sem íris, sem nada, tornou a se acenderem com uma luz prateada.
- De novo não! - gritou Marcos.
O casal abaixou-se e, da casa em frente, Ulisses viu a porta da frente de seus vizinhos se espatifar na calçada, quase acertando o carteiro.

Mais tarde, quando já começava a anoitecer, homens de terno preto levavam uma criatura que, se não fossem seus ruídos diabólicos e seus olhos felinos completamente pretos, podia-se dizer que era uma criança comum. Ana ainda não havia chegado e Ulisses se sentia cansado por causa do calor e frustrado por não ter conseguido escrever nada. Depois de dar uma volta pela mansão, o escritor começou a se sentir nostálgico. Alexia estava bebendo em seu quarto e isso deixou Ulisses se sentindo péssimo. Foi então para o lugar que sempre acolhia os angustiados, respeitando, multiplicando e temperando a miséria de cada um: o quarto debaixo do cemitério.
Preparou para si, um drinque. No entanto, fez isso somente para praticar suas habilidades no preparo de bebidas. Deixou o drinque ali e abriu uma garrafa de destilado dourada. Encheu um copo largo com a bebida e sentiu o cheiro lhe subir às narinas. Bebeu um grande gole da bebida e sentiu-se anestesiado emocionalmente em menos de um minuto. Bebeu então mais um grande gole e deslizou pela escuridão e pela superfície áspera, íngreme e acolhedora da nostalgia. Depois de quase meia garrafa da bebida, tirou o pano preto de cima de sua pedra filosofal e invocou o espírito de Cibelle.
As coisas aconteciam rápidas, tortas e confusas. Mas num lapso de sobriedade, Ulisses se viu diante do fantasma prateado de uma sonhora que olhava para tudo com um olhar perdido e preocupado.
- Cibelle? - disse.
- O que eu estou fazendo aqui? Onde eu estava e onde eu estou agora?
Ulisses se sentiu-se, inexplicavelmente culpado, entendendo que podia ter feito algo muito perigoso, ou, no mínimo desrespeitoso e egoísta. Cibelle olhava ao redor, perdida, e então seus olhos encontraram Ulisses.
- Eu não conheço você?
Ulisses, sentindo uma grande excitação dentro de si, feita de preocupação, sentimento de culpa, ansiedade, nostalgia e uma pitada explosiva de prazer por ter sua Cibelle de novo, sorriu tristemente e afirmou que sim com a cabeça.






 "- O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz a gente se sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece.
(trecho de Numa Fria, de Charles Bukowski)

sábado, 28 de dezembro de 2013

Capítulo 5


Inspiração

  Como escritor, Ulisses se sentia sem inspiração e disposição para escrever algo que pudesse ser apreciado. Na escuridão dos corredores da casa vazia ele percorreu sua solidão. Até que o fantasma de Snypes começou a lhe aparecer em todos os corredores da casa.
  - Oi Sr. Alves. Vamos conversar?
  - Porque não?
  Respondeu, perguntando Ulisses, sorrindo.
  Ulisses e Snypes encaminharam-se para o porão debaixo do cemitério.
  - Fala aí. Beleza, rapaz? - começou Ulisses, sacaneando Snypes.
  Quando Snypes começou a falar, foi interrompido pelo escritor.
  - Tive uma súbita vontade de escrever. A solidão me fez bem.
  Confessou, sorrindo.
  Despediu-se de Snypes e subiu as escadas para o cemitério. Snypes, que, apesar de estar planejando uma conversa com Ulisses à semanas, perdeu a vontade de conversar com ele naquele porão escuro daquele dia quente e ensolarado. Dias quentes e ensolarados não eram propícios à existência de fantasmas nebulosos e cinzentos com rancor pelos vivos no vazio onde antes batia um coração. Enquanto imergia nas trevas do porão, Ulisses emergia da escuridão das escadas do porão para a luz do sol que iluminava a grama verde do cemitério.  Correu para o escritório no último andar, abriu seu velho computador vinho e começou a digitar.







 "- Pode se saber o que estava procurando na segunda fileira das estantes? - Inspiração e, como pode ver, encontrei. - Mas de tipo culinário. Combinamos que escreveria todo santo dia, com inspiração ou não.
(trecho de O Jogo do Anjo, de Carlos Ruiz Zafón)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Capítulo 4


FBI Contra a Sobriedade

  O universo era contemplado pela mente soturna de Alexia e o passado lhe esperava em cada esquina de sua imaginação desesperançosa. Mais uma vez ela segurava uma garrafa de destilado e levava-a à boca, vez por outra, nas pausas que fazia em sua leitura de A Casa dos Esquecidos, escrito por seu pai. Falava sobre uma casa nos confins da cidade onde ela vivia, uma casa de madeira com uma ponte que passava sobre um pequeno lago na entrada. Todos os moradores da casa não se lembravam de quem eram antes de ali chegarem. Era como se suas vidas começassem no dia em que se mudavam para a casa. Alexia, cada vez mais se apaixonava pela mente de seu pai, pelas perspectivas que ele reservava para si e compartilhava com o mundo através de suas palavras, muito embora sua narrativa não fosse tão fluente quanto sua fala no dia a dia.
  Bateram à porta. Como estava sozinha em casa, Alexia decidiu ignorar. Estava bêbada e não queria passar a vergonha de falar enrolado na frente de ninguém. Mas a pessoa insistiu e Alexia levantou-se da cama furiosa e corajosa para mandar a pessoa embora. Quando abriu a porta, deparou-se com um brilhoso distintivo do FBI. Começou a gaguejar mas foi gentilmente interrompida.
  - Alexia?
  Ela tentou formar o nome do homem em seus lábios, mas percebeu que não conseguia lembrar o nome dele, nunca conseguiu.
  Com um sorriso disse:
  - Ei. Eu lembro de você. Nossa, você é do FBI?
  - Sim. É uma longa história. Veja, seus pais estão?
  - Aonde? - perguntou Alexia.
  - Em casa. - disse ele, percebendo que Alexia não parecia muito bem.
  - Ah. - sorriu Alexia, com os olhos quase fechados e vermelhos. - Não, eles não estão em casa. - E, sucumbindo às cócegas da paranoia, completou - Ainda. Não irão demorar.
  - Nem eu.
  O homem entrou na casa observando tudo como se nunca houvesse entrado lá antes.
  - Posso ver o porão debaixo do cemitério, Lexi?
  - Não.
  A resposta pegou o homem completamente de surpresa.
  - O que?
  - Não. - repetiu Alexia, com simpatia, rindo normalmente.
  - Você está bem, Alexia?
  O homem perguntou, franzindo o cenho, verdadeiramente curioso, mas não suficientemente preocupado.
  - Não. - Alexia respondeu, ainda sorrindo simpática e vulnerável.
  - Com licença, Alexia. Preciso dar uma olhada no porão.
  O homem já ia se virando quando Alexia, o interrompeu.
  - Mas eu disse não.
  - Como?
  - Você me perguntou se podia ver o porão e eu disse que não.
  - Vocês estão escondendo alguma coisa, Alexia! - perdeu a paciência, o homem.
  Aproximou-se de Alexia e a menina deu um passo atrás. Nunca havia visto seu ex-mordomo dessa maneira. Sempre o via como um companheiro que acobertava suas bagunças e comia torta de limão com ela quase todas as manhãs. Agora, Alexia foi assaltada pela lembrança do olhar atento dele para o suco vermelho que sua mãe tomava misturado com suco de laranja de manhã. Agora ela percebeu uma pitada daquele olhar derramando-se sobre ela e percebeu que aquilo era desconfiança.
  - Você pode me dar licença? - começou Alexia, muito séria. - Eu estou ocupada.
  - Eu também, Alexia. Eu estou trabalhando.
  - Dane-se! Eu não estou na sua casa te atrapalhando.
  - Atrapalhando a beber?
  - Beber, ler, etc. Não te interessa.
  - Você não era assim, Lexi.
  - Você está me chamando carinhosamente para me fragilizar.
  Alexia sorriu, vitoriosa.
  - Você sempre foi muito inteligente.
  - Continuo sendo. - fez uma pausa e tentou abafar um arroto com a mão.
  - Escute Alexia, pegue o meu cartão. Nos falaremos em outra ocasião, ok? De preferência quando você estiver sóbria.
  - Acho melhor. Obrigada.
  O homem partiu e Alexia perdeu a vontade de beber. Mas recuperou-a, cinco minutos e meio depois. Foi até seu quarto e disse oi para as garrafas de destilado mexicano que guardava debaixo da cama.








 "Esse era o problema de ser escritor, o problema principal - ócio, ócio demais. A gente tinha de esperar que a coisa crescesse até poder escrever, e enquanto esperava ficava doido, e enquanto ficava doido bebia, e quanto mais bebia, mais doido ficava. Não havia nada de glorioso na vida de um escritor nem na vida de um bebedor.
(trecho de Numa Fria, de Charles Bukowski)

domingo, 22 de dezembro de 2013

Capítulo 3


Destilado Mexicano

  Snypes estava sentado em um banco na praça da cidade. A luz da lua banhava toda a cidade. O vento soprava pelas ruas desertas da madrugada morna e Snypes se sentia péssimo por não conseguir sentir nada disso. Seu espírito cinza permanecia cabisbaixo e tristonho na solidão da praça. Seus olhos incapazes de derramarem lágrimas sonhavam algo misterioso por debaixo da aba de sua boina transparente. Agora que Ulisses Alves II havia conseguido retornar à vida carnal, Snypes se sentia mais sozinho do que nunca. Imaginou. em vida, que jamais encontraria a sensação de abandono no vazio da morte, mas decepcionou-se com a realidade de que agora, mesmo morto e livre, sentia-se completamente perdido.

  O agente do FBI bateu novamente na porta da casa dos Alves II duas manhãs depois de sua primeira visita. Dessa vez ele tinha um mandato.
  - Entre. - convidou Ulisses, sorridente. - Aceita um café?
  - Não. Muito obrigado, senhor Alves.
  - Segundo. - complementou Ulisses, sorrindo.
  - Como?
  - Senhor Alves Segundo.
  - Ah, sim. Desculpe.
  - Sem problemas.
  O homem olhou todos os cômodos, mas Ulisses reparou que o agente do FBI pareceu se interessar demais pelo porão sob o cemitério. Ulisses percebeu que ele não pareceu surpreso com o cômodo escuro sob os restos mortais no fundo do quintal. Também não encarou com pouca naturalidade o fato de a família ter um cemitério no fundo do quintal da mansão, geralmente isso causava espanto. Ulisses lembrou-se do homem, então. Era o mordomo que trabalha para sua família enquanto Ulisses estava morto. Ulisses começou a imaginar o que aquele homem estava procurando em seu porão.
  - Se eu avistar algum alienígena por aqui, eu lhe aviso. Pode ficar tranquilo quanto a isto.
  Afirmou Ulisses ao se despedir do homem.

  Ainda sofrendo com seus dilemas repentinos, Alexia se avaliava no espelho da sala de ginástica após uma sessão de esteira bem puxada. Além de exausta, continuava triste. Ficou então, divagando sobre como poderia permanecer emocionalmente imune à endorfina liberada devido a corrida. Isso a fez pensar que sua situação emocional era mais séria do que parecia e começou a se achar profundamente depressiva. Decidiu tomar um bom banho de banheira com uma garrafa de vinho. Mas estava com sede e vinho não iria cair bem. Então percebeu que era chegada a hora de beber algo novo. Foi até o porão, esquivando-se de seus pais, e pegou uma garrafa predominantemente quadrada, de origem mexicana. Parecia refrescante e forte ao mesmo tempo. Acima de tudo, forte o suficiente para sentir-se satisfeita com a vida, o universo e tudo o mais, com duas doses. Depois disso poderia tomar um refrigerante gelado. Seu pai a viu quando subia as escadas com a garrafa na mão, bem grudada à perna na tentativa de ocultá-la da vista de quem estivesse na sala. Mas seu pai, sempre atento, percebeu o que estava acontecendo e lhe lançou um olhar jocoso de repreensão. Alexia deu um sorrisinho sem graça e Ulisses conseguiu lhe dizer com o olhar que depois resolveria com ela aquela questão, mas que ela aproveitasse o banho e o destilado, por hora. Alexia sorriu e subiu as escadas. Encheu a banheira, abriu sua garrafa e tomou um longo e doloroso gole, direto do gargalo. Fez uma pausa e, quando a ardência amenizou, tomou mais um longo gole. Porém, não aguentou e deixou um pouco da bebida escorrer de sua boca, passar por seu pescoço e desembocar na água da banheira. Ficou intercalando o destilado com o refrigerante gelado que já estava no banheiro por um longo tempo na banheira, ouvindo músicas melancólicas que falavam sobre esperanças e sonhos crucificados. Permaneceu de olhos fechados, a sonhar com suas angústias e como se identificava com elas. A alegria não lhe parecia confortável, apenas barulhenta e necessária.








 "- O tempo, meu caro Max, não existe: é uma ilusão. Até o seu amigo Copérnico teria descoberto isso se tivesse tido tempo, justamente. Irônico, não é mesmo?
(trecho de O Príncipe da Névoa, de Carlos Ruiz Zafón)


sábado, 21 de dezembro de 2013

Capítulo 2


Uma Migalha sobre a Inferioridade Humana


       Alexia foi até a academia da casa. Era onde ficavam os diplomas, um aparelho de som, uma esteira ergométrica e um espelho que ocupava uma parede inteira. Lá, Alexia encontrou Magdalena a dançar animadamente ao som de um hip hop intenso. Ana e a genia que ressuscitou seu pai, não se falavam muito verbalmente, mas trocavam olhares seguidos de sorrisos sinceros e mágicos. Foi um desses olhares costumeiros que puxaram um sorriso intenso dos lábios de Alexia, convidando-a para se juntar à dança. Era noite e alguns zumbis erravam pelo quintal gramado da mansão. Alexia os via pela janela quadriculada do quarto quando passava por ali sem querer durante a divertida dança com a genia Magdalena.
Mais tarde, Alexia foi para o seu quarto. Preocupou-se com o fato de que Magdalena desapareceria muito em breve, afinal a menina já havia feito seu último pedido. Alexia se perguntava para onde iam os gênios presos em suas lâmpadas. E mais ainda, perguntava-se porque chamavam aquele bule dourado de lâmpada. De qualquer maneira, ela se sentiu triste por Magdalena e foi procurar a genia.
- Porque está chorando? - perguntou Alexia, quando encontrou Magdalena chorando no porão obscuro, debaixo do cemitério do quintal.
- Porque vocês humanos são todos burros demais.
- Quê?
Alexia ficou incrédula.
- Ora. Eu sou uma genia, Alexia. Sei de tudo e muito sobre tudo. Por isso consigo realizar tudo o que as pessoas pedem. Mas isso me torna inferior perante uma gente que me é inferior. Entende?
- Sim.
- Sendo, é claro, que não me são inferiores.
- Perfeitamente, Magdalena.
A genia encontrou um esforço genuíno de compreensão no olhar sério de Alexia.
- Você não precisava ser tão sincera, Magdalena.
- Eu sei, querida. Desculpe.
- Porém, comigo você sabe que pode ser.
Disse Alexia sorrindo.
De repente, Alexia virou-se e começou a correr, e pela primeira vez em milênios, Magdalena não compreendeu o significado daquela atitude.

Quando Alexia parou de correr, estava na praia. O cheiro da maresia e o ar fresco vindo do mar a estava anestesiando. Ela se sentia confusa e intensamente satisfeita por ter feito o que não era comum. Algo surpreendente e espontâneo. Um experimento pessoal para com a existência universal. Ela se sentiu pequena diante a grandeza do oceano e da potência emocional do carinho do vento noturno. Isso a fez pensar na vida, no universo e em tudo o mais. O vento, então, chegou para apoiá-la. As partículas de oxigênio movimentavam-se velozmente, sacudindo os cabelos longos e loiros de Alexia. Acariciando seu rosto e assobiando uma maravilhosa melodia assombrosa pela praia.








 "- Sabe, Meg, o que é mau e o que nos ensinam que é mau às vezes são duas coisas muito diferentes. A sociedade nos ensina que certas coisas são más para nos manter subservientes.
(trecho de Numa Fria, de Charles Bukowski)



domingo, 15 de dezembro de 2013

Capítulo 1


Vida


       Um rosnado assombrado vinha rastejando gotejante na forma sonora da cozinha até o quarto onde o rapaz descabelado dormia. A sombra de uma forma desforme crescia na parede do lugar e a mudança considerável na iluminação fez o rapaz despertar. Seu olhos, quando abriram, arregalaram-se e tudo se tornou silêncio.
       Na casa em frente, Ulisses tomava seu café da manhã, um suco de plasma que lhe era muito agradável nessa manhã em particular. Toda a confusão familiar pareceu regularizar-se depois do jantar no quintal da semana anterior. Ana parecia mais sorridente e Alexia mais despreocupada. Quando terminou seu suco, Ulisses chamou Ana para assistir um filme de terror na sala.
       Abraçados no sofá, tomando chocolate quente com laranja debaixo dos cobertores, o casal se deixava levar pela história assustadora e consistente que os envolvia e os carregava para um pesadelo maldito onde um assassino terminava com a vida de suas vítimas quando estas dormiam. Foram subitamente interrompidos por um barulho característico de algo pesado caindo em algum lugar da casa que ambos não foram capazes de saber a procedência. Ulisses foi tomado por uma emoção real e adiantou-se em busca da origem do barulho. Corajosa e animadamente ele percorreu cômodo por cômodo, mas nada encontrou. Torceu o nariz com a desilusão de não ter encontrado nada emocionante e voltou ao filme com a esposa.
       Alexia estava em seu quarto com uma garrafa de vinho. Tomava cuidado para não passar mal novamente, pois detestou a sensação, mas se deliciava com o vinho maravilhoso que seu pai trouxera da França quando lá esteve pouco antes de escrever Um Drink Sangrento em Paris. A cada capítulo de 42 lidos, bebia um gole. 42 foi um dos primeiros livros escritos por seu pai, quando este ainda morava no casebre oculto nos confins da cidade, sozinho e sem a menor ideia de onde havia vindo e de onde é que gostaria de chegar. Ana começou a gostar cada vez mais do autor dos livros e, aos poucos, muito sutilmente e somente quando olhava seu pai nos olhos (que era quando ele não a estava olhando nos olhos) percebia um resquício daquele autor sensível e intenso dentro dele.
       Três batidas leves soaram na porta. Ulisses, antes de Ana, percebeu. Deu pause no filme e foi até a porta. Reconheceu de imediato o antigo mordomo da família. O homem, contudo, não havia conhecido Ulisses, pois trabalhou na casa enquanto Ulisses estava morto.
       - Pois não. - disse Ulisses, gentilmente.
       O homem mostrou o distintivo e complementou sorridente:
       - Agente especial Teodoro, FBI.
       Ulisses olhou para o distintivo como que olhasse um desses panfletos que os surdos e mudos mostram em troca de uns trocados no sinal e repetiu:
       - Pois não?
       - Eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
       Ulisses ia dizer "pois não" mais uma vez, mas não queria ofender o homem.
       - Claro. Diga.
       - Posso entrar?
       O homem fez a pergunta sorrindo e confiante de que poderia entrar e investigar em silêncio ocular a residência de Ulisses.
       - Não. - respondeu Ulisses, como se respondesse ao garçom que pergunta se ele gostaria de algo para beber enquanto degusta seu prato preferido.
       - Desculpe. - disse o agente.
       - O que? - perguntou Ulisses, sinceramente.
       - Não posso entrar?
       - É que eu estou ocupado. - disse Ulisses sorrindo.
       - Ocupado? - perguntou o agente, sério e com um leve tom de acusação na voz.
       - Sim. - sorriu Ulisses. - Estou assistindo um filme com minha esposa. Estamos no final e é muito emocionante!
       O homem deu um passo à frente e Ulisses o repreendeu.
       - Se você entrar em minha casa sem minha autorização ou um mandato eu darei queixa. Ou, ao menos, uma pancada em seu queixo.
       O homem encarou Ulisses de forma ameaçadora, mas Ulisses não se sentiu ameaçado, encarava-o de volta normalmente.
       - Como queira. Voltarei com um mandato.
       O homem deu meia volta e foi-se embora.
       Ulisses fechou a porta satisfeito, mas um pouco chateado por ter remarcado aquela visita indesejável para outra ocasião.
       Um barulho ensurdecedor irrompeu do chão fazendo a mansão dos Alves II tremer. Ana levantou-se do sofá com um grito e a TV caiu no chão, espatifando-se. Alexia deixou o livro cair de suas mãos quando estava lendo a última frase da penúltima página do livro e arregalou os olhos. Ulisses cambaleou pego de surpresa e riu quando o tremor passou.
       - O que é isso? - perguntou Ana.
       - Doideira, não é? - disse Ulisses.








 "- Carne é carne, dor é dor. - disse Monk.
 - Você subestima o espírito humano - disse a dona.
(trecho de Numa Fria, de Charles Bukowski)




sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Entrevista com o Ilustre Ulisses Alves

       Com a falta de sucesso do seu primeiro livro Esquimolândia, Ulisses Alves se diz contente com os resultados fracos de sua primeira obra publicada. Esquimolândia é o primeiro livro de uma série de quatro volumes que focam nas aventuras do faz de conta de crianças e adolescentes. Ulisses, no entanto insiste que seus livros são muito mais do que isso.
       Confira a entrevista exclusiva com Ulisses Alves:



Ulisses: Como veio a inspiração para começar a escrever as histórias de Esquimolândia?

Ulisses Alves: Bom, na escola meu amigos contavam muitas histórias engraçadas sobre o bairro onde moravam, em Teresópolis. Contavam sobre jaguatiricas, macumbas em cruzamentos e vassouras com cabelo de gente. Muitas das...

Ulisses: Próxima pergunta. Você está satisfeito com os resultados do seu primeiro livro?

Ulisses Alves: Sim. Bastante. Não tenho paciência de ficar lendo ele toda hora, mas fiquei muito animado quando uma amiga confirmou que havia comprado e que já estava terminando de ler o primeiro capítulo.

Ulisses: Interessante, deve ser muito gratificante saber que uma pessoa comprou.

Ulisses Alves: (risos).

Ulisses: O que é, de fato, esse mundo que você criou? É um estado de espírito, um mundo mesmo, um símbolo...

Ulisses Alves: É complicado de explicar. Esquimolândia é uma filosofia de vida. É um universo que se ajusta e se torna ideal para todos a qualquer momento. Ler Esquimolândia é uma experiência divertida e, dependendo do leitor, uma viagem profunda ao auto esclarecimento e aceitação das circunstâncias da existência.

Ulisses: Certo. Mas me diga, quais são as suas expectativas para o lançamento da sequência?

Ulisses Alves: Sei lá.

Ulisses: Hmm. Eu soube que vai se tratar de emos, emoticons e Orkut, correto?

Ulisses Alves: Sim, sim. Exatamente. O próximo livro se chama Esquimolândia - O Emocalipse. Se trata da aventura pelo universo adolescente emo. Aventuras pelo Orkut e MSN.

Ulisses: Beleza então. Obrigado pela sua atenção.

Ulisses Alves: De nada, eu que te agradeço pela honra de me entrevistar. E obrigado pelo "ilustre" no título do post (risos).




       Esquimolândia - O Emocalipse está prevista para lançar no final desse ano. Até lá, não deixem de conferir o primeiro livro, Esquimolândia, que está à venda na Saraiva (http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/4933813)por apenas R$ 4,99.



terça-feira, 13 de agosto de 2013

Ano Novo - Vítimas Novas

Dia 51

       "Com o tempo, eu serei perdoado." O homem caminhava nas sombras, camuflado na escuridão. Apanhou do bolso interno do sobretudo um cantil de uísque e bebeu com vontade e energia! A barra de seu sobretudo voava para trás enquanto ele caminhava, dando-lhe um majestoso ar cinematográfico. Guardou o cantil alcoólico de volta no bolso interno e afastou, com um movimento veloz do pescoço, uma pequena mecha de cabelos negros que lhe caía os olhos. Ajustou o chapéu na cabeça e parou no meio da rua. "Eu poderia ter vontade de urinar agora, é um grande momento para a humanidade, embora ninguém, além de mim, tenha consciência disso. Porém, não é mais que um medíocre rastejar imperceptível para o universo. E por isso, poderia calhar de eu ter vontade de urinar agora, quebrando a beleza macabra do meu ato neste primeiro dia do ano de 2011", pensou ele enquanto caminhava resoluto em frente, aproximando-se do silencioso centro da cidade.
       Ao lado de um posto da gasolina de esquina, um bar abrigava alguns homens embriagados. O homem de sobretudo e chapéu negros parou diante da porta do bar e todos, imediatamente o avistaram, cessando um pouco seus sorrisos por terem sido assaltados por uma curiosidade súbita. Com a cabeça baixa, ninguém podia ver seus olhos. Seu nariz e boca eram cobertos pela sombra gerada pelo chapéu sob a luz do letreiro do bar. O homem, estreando sua presença sob a atenção daqueles homens, levou a mão ao bolso calmamente, porém com tamanha confiança, que ativou no subconsciente de um dos espectadores a ideia de que ele tiraria do bolso interno de sua negra, longa e elegantemente vestimenta, uma arma. Porém, com um susto contido, esse pobre bêbado, pai de duas meninas e esposo de uma falecida esposa, presenciou o homem diante do bar, sacar do bolso interno um belo cantil de uísque e beber com gosto uma parte de seu conteúdo. Em seguida, tudo aconteceu muito rápido. O homem de sobretudo saltou sobre o bar, não com muito velocidade, mas era algo que ninguém pensava que aconteceria, e por isso, o reflexo de todos não respondeu de imediato. O atendente e dono do bar foi atingido no rosto por um soco ou um pontapé e em seguida, uma garrafa de cachaça pela metade atingiu o rosto de um velho magrelo que caiu do banco de estatelou-se no chão agonizante. Um homem deu a volta para alcançar o interior do balcão. Nosso vilão, no entanto, girou 360° com velocidade e sem perder muito o equilíbrio e ao completar o movimento, atingiu com ferocidade a orelha do homem que tendia impedi-lo de cometer mais agressões. O homem atingido teve a cabeça jogada contra a vidraça do armário de tabacos, o vidro partiu-se em mil pedaços e o rosto ensanguentado do homem com boa parte de seus reflexos comprometidos em virtude da quantidade de álcool ingerida, despencou ao chão. "Ah! Lavando a alma!", exclamou o homem de sobretudo em pensamento, e tendo o pensamento vazando por seu rosto em forma de sorriso. O que assustou muitamente os outros três camaradas do outro lado do balcão.
       - O que mais vocês vão querer? - perguntou o homem de sobretudo com um sorriso gigantesco no rosto, estava realmente feliz.
       O dono do bar e os quatro clientes solitários desta madrugada do primeiro dia de janeiro de 2011 jamais seriam vistos novamente na cidade de Teresópolis.



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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

2010 - 2011

Dia 47

       - Este é o meu momento. Você terá o seu... em breve. - disse o homem trajado de seu sobretudo negro e vestindo na cabeça um chapéu da mesma cor, para o rapaz pálido que jazia no colchão no canto da sala da caverna gotejante. Resoluto ele virou-se, fazendo o sobretudo girar teatralmente como a capa de um vilão no prelúdio triunfante de seu derradeiro ato de maldade. O mocinho da história, porém, jazia em coma no colchão da cova do inimigo, que por sua vez, saía do túmulo de alguém para a noite fria do último dia do ano de 2010.







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domingo, 28 de julho de 2013

Episódio 7 - Season Finale

Fantasmas Retroativos

Deitado em cima do telhado da casa, achando ainda ser o fantasma dourado, Ulisses ficava quase invisível naquela tarde ensolarada. Sentia com sua inteligência o vento gelado assoprando a cidade e seu corpo fantasmagórico. Mas não podia apreciar a sensação física do sopro frio e invisível que percorria as ruas e calçadas e os telhados da vizinhança, fazendo cócegas nas árvores, fazendo-as se contorcerem divertidamente. Perdido naquele infinito azul, Ulisses se sentiu tão em paz que perdeu a noção do tempo, do espaço, da vida e da morte. Percorreu toda a sensação de existência, mas tomou cuidado para não ir muito longe, teve medo de se perder novamente em outra viagem astral. Sua família não compreenderia, naturalmente, e ficariam todos chateadíssimos com ele novamente. Quando um pássaro passou e o despertou do devaneio celestial, lhe veio à consciência a decisão de esclarecer tudo com a sua família. Faria um churrasco no quintal naquela noite e todos comeriam cachorros quentes, picanha, linguiça, pão com pasta de alho e cebola na brasa.
Era sábado e Ana estava no trabalho, mas Alexia estava em casa, deitada em sua cama, perto da janela, lendo um livro. O vento entrava pela janela e ficava dando voltas agitadamente no quarto da adolescente. Brincava, vez por outra, com o cabelo dela e a menina achava muito divertido. Estava lendo Cinzas, um livro de romance escrito por seu pai pouco antes dele morrer eletrocutado. Na verdade, esse livro ganhava uma aura especial, justamente por ter sido o último livro escrito por Ulisses antes de sua morte. Alexia se encontrou perdida na história de um amor impossível entre um cinegrafista profissional e uma empregada doméstica. A história se passava em sua cidade e isso à tornou mais propícia a sentir-se mais próxima da história que estava lendo. Na história, por passarem tanto tempo ocupados com seus respectivos trabalhos, procurando arrumarem dinheiro o suficiente para construírem uma vida juntos, os personagens deixaram, descuidadosamente, o tempo passar. Quando se deram conta já eram velhos demais para apreciarem as coisas que os atraíam quando jovens. Ainda tinham, cada um, seus prazeres na vida, porém, seus gostos eram por coisas novas e específicas para cada e assim, nunca mais se sentiram próximos o suficiente para viverem juntos, apesar da vontade que não passava, na verdade, de uma meta a ser cumprida. Um resquício do desejo intenso que tiveram quando na parte mais intensa de suas vidas. Quando, enfim, ficaram juntos, a moça faleceu na cama do homem, quando estavam prestes a ter sua primeira relação sexual juntos. Alexia chorou durante diversos momentos do livro. Andava meio sensível emocionalmente.
No final da tarde Ulisses ligou o som bem alto dentro da casa, para que ficasse no volume ideal lá fora no jardim. Assim, eles poderiam criar um clima divertido e cinematográfico enquanto conversavam sem ter que gritar. Acendeu, pela primeira vez em mais de uma década, a churrasqueira da varanda e começou a assar a picanha e as salsichas. Atraída pelo cheiro delicioso, Ana foi até a varanda e sorriu ao ver seu marido fantasma utilizando a churrasqueira. Lá pelas nove da noite, Ana, Alexia e Ulisses estavam na mesa do jardim comendo e conversando. Ulisses comia picanha com farofa e molho a campanha. Ana devorava com vontade a sua picanha com arroz branco, farofa e uma salada de maionese com bastante azeite. Alexia degustava, satisfeita, um cachorro quente e bebia suco de plasma de caixinha enquanto seus pais bebiam cerveja Note. Uma cerveja criada por Ulisses e uma amiga da vizinhança. Era uma cerveja específica para o inverno. No centro da mesa, uma panela com água fervente borbulhava com a garrafa escura da cerveja em seu interior. Com a cerveja quente, Ulisses pegava-a com o suporte e servia a caneca de madeira que Ana tinha na mão e depois servia-se generosamente. - Gente. - começou Ulisses. Por dentro estava ansioso e inseguro, mas tinha consciência que de por fora ninguém podia dizer. - Gostaria de colocar as coisas em ordem hoje, ok? Queria conversar sobre nós com vocês. Alexia não disse nada, mas não pareceu incomodada com a proposta do pai, apesar de, naturalmente, um pouco entediada. Ana estava bastante contente e por isso simplesmente concordou, saboreando sua deliciosa refeição sob um incrível luar de inverno. - Bom... Ana. Eu gostaria de dizer que te amo. E estou disposto a ter uma vida maravilhosa e repleta de emoções e alegrias ao seu lado. Sem saber o que responder, Ana simplesmente balançou a cabeça afirmativamente. Alexia, por sua vez, fingiu ignorar. Mas sabia que a próxima fala de seu pai seria dirigida à ela. - E eu preciso saber que você está feliz, Alexia. E também preciso saber o que vocês precisam que eu explique para que todos nós possamos ficar em sincronia. - Ah, pai. Eu estou bem. - respondeu Alexia. Ulisses olhou para Ana e vendo que ela só lhe olhava sem nada dizer, ele encheu o copo dela de cerveja. Mais tarde, quando Ana já estava bêbada e disposta a conversar mais e Alexia um pouco menos entediada, Ulisses procurou instigar nelas a vontade de se exporem à sua própria exposição. - Gente, vamos começar do início. Eu morava em uma casa que mais parecia uma cabana nos recantos longínquos dessa cidade. Em meio à arvores obscuras, mas tinha uma linda pontezinha sobre um laguinho charmoso na entrada. Morei sozinho lá por um bom tempo e escrevi alguns livros. Os que os mais gosto, pelo menos. Uma das minhas melhores amigas, cujo o nome, vergonhosamente, eu não me lembro, era a dona dessa casa aqui. Eu vim em uma festa aqui uma vez e conheci o marido dela. Uma pessoa maravilhosa. Ela faleceu um dia, já bem velhinha e eu nunca mais soube do marido dela. Conforme eu consegui ganhar mais dinheiro com as vendas dos meus livros, eu contratei uma empregada doméstica para limpar as coisas em casa. Ana e Alexia ouviam a história com genuíno interesse. - Então... ela era uma jovem muito bonita e eu gostaria de ter uma família. Estava cansado de ficar sozinho. Ulisses encheu o seu copo e o de sua esposa. Alexia pediu que ele pausasse a história, pois queria ir até o porão pegar uma garrafa de vinho com plasma. Enquanto Alexia foi lá embaixo, Ana perguntou sobre Cibele. - Já vou chegar lá, querida. Espere Alexia voltar. Quando Alexia voltou, Ulisses abriu para a filha a garrafa de vinho e serviu uma taça para a menina. - Bom... voltando à história. - Ulisses deu uma pausa. - onde eu estava mesmo? - Sua nova empregada doméstica, pai. - ajudou-o Alexia. - Ah, sim! Isso. Bem, então eu achei essa menina muito bonita e decidi que gostaria de ter uma família com ela. Ela correspondeu e nós começamos a ter um romance. Ana se sentia um pouco desconfortável com essa parte da história e Ulisses sabia. Mas gostaria que Ana se sentisse confiante e confortável. Por isso, continuou a história. - Então saímos por algum tempo, mas nunca tivemos a oportunidade de fazer um filho ou filha. Ana e Alexia se sentiram visivelmente desconfortáveis com essa informação direta. Ulisses ignorou e continuou: - Então eu comprei esta casa e me mudei para cá. Convidei Cibele para vir me visitar e então percebi como ela havia envelhecido. De qualquer forma, ela continuava charmosa e linda aos meus olhos apaixonados. Então, precisamente na noite em que tentamos ter uma relação mais íntima, na noite em que nos unimos na cama e tencionamos começar uma família, aquele treco encapuzado desceu em meu quarto e a solicitou. Ela, de bom grato, foi-se. - Que triste. - disse Ana sarcástica. Ulisses percebeu uma luz branca surgir atrás de si e o olhar indiferente de Alexia só confirmou a presença de Snypes. Ulisses imaginou-se levantando-se com normalidade, virando-se, em sua imaginação, de maneira comum, deixando Snypes confortável com seu sorriso triunfante no rosto resplandescente e transparente e então acertando-o no nariz com força. Um brilho, então, explodiria do impacto dos dois fantasmas e Snypes iria parar no cemitério. Ana arregalaria os olhos e serviria-se de mais bebida. Alexia sorriria e terminaria sua taça de vinho com plasma. Ulisses imergiria na grama, desaparecendo e reaparecendo subitamente segundos depois enquanto Snypes se levantava. Ulisses surgiria, então, do chão, agarrando Snypes e carregando-o para o céu noturno em altíssima velocidade. Ana e Alexia assistiriam o decolar dos fantasmas em uma velocidade absurda. Como uma estrela cadente incandescente eles subiriam aos céus até parecerem um pontinho brilhoso longínquo. Na lua, Ulisses soltaria Snypes e lhe daria um chute no rosto com força, fazendo-o voar até uma colina. - Eu quero que você pare de me encher a paciência, Snypes. Fui claro? Snypes estaria assustado e concordaria. - Eu sei que você vai voltar e você sabe o que vai acontecer se você voltar. Dito isso, Ulisses pularia e voaria em direção ao seu planeta. Chegando na cidade, puser-se-ia a caminho de sua casa. Chegando em casa, após terminar sua aventura mental, ansioso, queria resolver logo a questão. - Olhem, minhas queridas. Eu só quero que vocês entendam plenamente que eu só quero ser feliz e fazer feliz quem me cerca. Só isso. E além disso, quero que vocês entendam que ser feliz é mais importante do que tudo. Isso pode parecer vago, mas é o essencial.
Depois que as meninas foram dormir, Ulisses considerou suas palavras e decidiu ir até o cemitério. Contemplou em dúvida a lápide de Cibele. Estava certo de que a deixaria descansar em paz, mas se lembrou de todo o amor interrompido. Os sentimentos verdadeiros da época terminal em que escrevia Cinzas tomaram consistência em seu coração. Algo como o passado lhe cairia bem. Pensou no que Ana iria pensar, em como Alexia reagiria, em como iria explicar tudo para Cibele e como ele próprio lidaria com toda essa revolução, mas seu subconsciente falava mais alto, muito embora ele não pudesse ouvir distintamente, que ele deveria simplesmente buscar o que lhe agradava. No dia seguinte, amanheceu em sua cama, pensando no que havia feito na noite anterior, mas não conseguia se lembrar de nada. Contudo, conseguia saber em sua mente que havia bebido bastante cerveja com sua esposa e que havia ido ao túmulo de Cibele. Também, finalmente, começou a se dar conta de que havia se tornado novamente uma criatura feita de carne, osso e tudo mais. Porém, infelizmente não conseguia se lembrar do momento em que se tornara aquilo que ansiava voltar a ser. Adormeceu, portanto, novamente, nessa tentativa.





""Não fique triste," ele disse, dando-lhe um abraço. "Eu vou carregar esta asa com orgulho, como símbolo do amor de uma maravilhosa irmã.""
(Hans Christian Andersen, em Os Cisnes Selvagens)