segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Capítulo 6


Criaturas Importadas

  Do escritório dava para ouvir os barulhos da casa em frente. A prataria que se estilhaçava, os gritos abafados pelas janelas fechadas, o armário antigo e pesado que caiu. Alexia acordou assustada e olhou pela janela, para a casa do vizinho. Os gritos ficaram ainda mais evidentes quando uma das janelas da casa explodiu, desintegrando a vidraça. Alexia correu para longe de sua janela, e ficou parada no outro canto do quarto. No andar de cima, Ulisses observava calmamente a bagunça na casa do vizinho. Tentou voltar a escrever, ignorando a situação ao lado, mas não conseguiu se concentrar. Suspirou então e ficou da janela, imaginando o que poderia estar acontecendo. Achou muito interessante a explosão da janela e não conseguiu conter sua imaginação. Sabia que podia contar com as pessoas, muito embora não as suportasse. Portanto, convenceu-se de que sua consciência estava limpa e ficou ali sentado, na sua confortável cadeira de escritório assistindo o desenrolar da história, sem dúvidas algum vizinho ligaria para a polícia, disso Ulisses tinha certeza. Ulisses também não pode evitar um sorriso torto ao lembrar que podia sempre contar com o pavor previsível que acometia as pessoas em situações como aquela.
Na casa em frente, a coisa estava feia. Marcos José corria de lá para cá, com uma criatura verde e nojenta em seu encalço. O bicho desconhecido, se parecia levemente com um anão raquítico, fluorescente. Era muito veloz, mas, para a sorte de Marcos e Viviana, a criatura era extremamente destrambelhada. A casa estava completamente destruída. Viviana levou as mãos ao rosto e sacudiu a cabeça, lamentando profundamente sobre os destroços do grande armário com as cinzas de gerações e gerações de sua família. Marcos José, quando conseguiu despistar a criatura que lhe perseguia, sacudiu a cabeça apavorado com o estado de sua sala de estar. Metade da TV estava apoiada no sofá, a metade da outra metade balançava debilmente pendurada no pequeno pedaço do lustra que ainda jazia pendurado no teto rachado.
- Eu disse para você não deixar a louça acumular, Viviana! Mas que droga! Porque não lava a porcaria da louça?
- Ah, vai tomar...
O grito esganiçado da criatura a interrompeu. os olhos felinos da criatura, sem pupilas, sem íris, sem nada, tornou a se acenderem com uma luz prateada.
- De novo não! - gritou Marcos.
O casal abaixou-se e, da casa em frente, Ulisses viu a porta da frente de seus vizinhos se espatifar na calçada, quase acertando o carteiro.

Mais tarde, quando já começava a anoitecer, homens de terno preto levavam uma criatura que, se não fossem seus ruídos diabólicos e seus olhos felinos completamente pretos, podia-se dizer que era uma criança comum. Ana ainda não havia chegado e Ulisses se sentia cansado por causa do calor e frustrado por não ter conseguido escrever nada. Depois de dar uma volta pela mansão, o escritor começou a se sentir nostálgico. Alexia estava bebendo em seu quarto e isso deixou Ulisses se sentindo péssimo. Foi então para o lugar que sempre acolhia os angustiados, respeitando, multiplicando e temperando a miséria de cada um: o quarto debaixo do cemitério.
Preparou para si, um drinque. No entanto, fez isso somente para praticar suas habilidades no preparo de bebidas. Deixou o drinque ali e abriu uma garrafa de destilado dourada. Encheu um copo largo com a bebida e sentiu o cheiro lhe subir às narinas. Bebeu um grande gole da bebida e sentiu-se anestesiado emocionalmente em menos de um minuto. Bebeu então mais um grande gole e deslizou pela escuridão e pela superfície áspera, íngreme e acolhedora da nostalgia. Depois de quase meia garrafa da bebida, tirou o pano preto de cima de sua pedra filosofal e invocou o espírito de Cibelle.
As coisas aconteciam rápidas, tortas e confusas. Mas num lapso de sobriedade, Ulisses se viu diante do fantasma prateado de uma sonhora que olhava para tudo com um olhar perdido e preocupado.
- Cibelle? - disse.
- O que eu estou fazendo aqui? Onde eu estava e onde eu estou agora?
Ulisses se sentiu-se, inexplicavelmente culpado, entendendo que podia ter feito algo muito perigoso, ou, no mínimo desrespeitoso e egoísta. Cibelle olhava ao redor, perdida, e então seus olhos encontraram Ulisses.
- Eu não conheço você?
Ulisses, sentindo uma grande excitação dentro de si, feita de preocupação, sentimento de culpa, ansiedade, nostalgia e uma pitada explosiva de prazer por ter sua Cibelle de novo, sorriu tristemente e afirmou que sim com a cabeça.






 "- O amor é uma espécie de preconceito. A gente ama o que precisa, ama o que faz a gente se sentir bem, ama o que é conveniente. Como pode dizer que ama uma pessoa quando há dez mil outras no mundo que você amaria mais se conhecesse? Mas a gente nunca conhece.
(trecho de Numa Fria, de Charles Bukowski)

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