domingo, 15 de dezembro de 2013

Capítulo 1


Vida


       Um rosnado assombrado vinha rastejando gotejante na forma sonora da cozinha até o quarto onde o rapaz descabelado dormia. A sombra de uma forma desforme crescia na parede do lugar e a mudança considerável na iluminação fez o rapaz despertar. Seu olhos, quando abriram, arregalaram-se e tudo se tornou silêncio.
       Na casa em frente, Ulisses tomava seu café da manhã, um suco de plasma que lhe era muito agradável nessa manhã em particular. Toda a confusão familiar pareceu regularizar-se depois do jantar no quintal da semana anterior. Ana parecia mais sorridente e Alexia mais despreocupada. Quando terminou seu suco, Ulisses chamou Ana para assistir um filme de terror na sala.
       Abraçados no sofá, tomando chocolate quente com laranja debaixo dos cobertores, o casal se deixava levar pela história assustadora e consistente que os envolvia e os carregava para um pesadelo maldito onde um assassino terminava com a vida de suas vítimas quando estas dormiam. Foram subitamente interrompidos por um barulho característico de algo pesado caindo em algum lugar da casa que ambos não foram capazes de saber a procedência. Ulisses foi tomado por uma emoção real e adiantou-se em busca da origem do barulho. Corajosa e animadamente ele percorreu cômodo por cômodo, mas nada encontrou. Torceu o nariz com a desilusão de não ter encontrado nada emocionante e voltou ao filme com a esposa.
       Alexia estava em seu quarto com uma garrafa de vinho. Tomava cuidado para não passar mal novamente, pois detestou a sensação, mas se deliciava com o vinho maravilhoso que seu pai trouxera da França quando lá esteve pouco antes de escrever Um Drink Sangrento em Paris. A cada capítulo de 42 lidos, bebia um gole. 42 foi um dos primeiros livros escritos por seu pai, quando este ainda morava no casebre oculto nos confins da cidade, sozinho e sem a menor ideia de onde havia vindo e de onde é que gostaria de chegar. Ana começou a gostar cada vez mais do autor dos livros e, aos poucos, muito sutilmente e somente quando olhava seu pai nos olhos (que era quando ele não a estava olhando nos olhos) percebia um resquício daquele autor sensível e intenso dentro dele.
       Três batidas leves soaram na porta. Ulisses, antes de Ana, percebeu. Deu pause no filme e foi até a porta. Reconheceu de imediato o antigo mordomo da família. O homem, contudo, não havia conhecido Ulisses, pois trabalhou na casa enquanto Ulisses estava morto.
       - Pois não. - disse Ulisses, gentilmente.
       O homem mostrou o distintivo e complementou sorridente:
       - Agente especial Teodoro, FBI.
       Ulisses olhou para o distintivo como que olhasse um desses panfletos que os surdos e mudos mostram em troca de uns trocados no sinal e repetiu:
       - Pois não?
       - Eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
       Ulisses ia dizer "pois não" mais uma vez, mas não queria ofender o homem.
       - Claro. Diga.
       - Posso entrar?
       O homem fez a pergunta sorrindo e confiante de que poderia entrar e investigar em silêncio ocular a residência de Ulisses.
       - Não. - respondeu Ulisses, como se respondesse ao garçom que pergunta se ele gostaria de algo para beber enquanto degusta seu prato preferido.
       - Desculpe. - disse o agente.
       - O que? - perguntou Ulisses, sinceramente.
       - Não posso entrar?
       - É que eu estou ocupado. - disse Ulisses sorrindo.
       - Ocupado? - perguntou o agente, sério e com um leve tom de acusação na voz.
       - Sim. - sorriu Ulisses. - Estou assistindo um filme com minha esposa. Estamos no final e é muito emocionante!
       O homem deu um passo à frente e Ulisses o repreendeu.
       - Se você entrar em minha casa sem minha autorização ou um mandato eu darei queixa. Ou, ao menos, uma pancada em seu queixo.
       O homem encarou Ulisses de forma ameaçadora, mas Ulisses não se sentiu ameaçado, encarava-o de volta normalmente.
       - Como queira. Voltarei com um mandato.
       O homem deu meia volta e foi-se embora.
       Ulisses fechou a porta satisfeito, mas um pouco chateado por ter remarcado aquela visita indesejável para outra ocasião.
       Um barulho ensurdecedor irrompeu do chão fazendo a mansão dos Alves II tremer. Ana levantou-se do sofá com um grito e a TV caiu no chão, espatifando-se. Alexia deixou o livro cair de suas mãos quando estava lendo a última frase da penúltima página do livro e arregalou os olhos. Ulisses cambaleou pego de surpresa e riu quando o tremor passou.
       - O que é isso? - perguntou Ana.
       - Doideira, não é? - disse Ulisses.








 "- Carne é carne, dor é dor. - disse Monk.
 - Você subestima o espírito humano - disse a dona.
(trecho de Numa Fria, de Charles Bukowski)




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