domingo, 28 de julho de 2013

Episódio 7 - Season Finale

Fantasmas Retroativos

Deitado em cima do telhado da casa, achando ainda ser o fantasma dourado, Ulisses ficava quase invisível naquela tarde ensolarada. Sentia com sua inteligência o vento gelado assoprando a cidade e seu corpo fantasmagórico. Mas não podia apreciar a sensação física do sopro frio e invisível que percorria as ruas e calçadas e os telhados da vizinhança, fazendo cócegas nas árvores, fazendo-as se contorcerem divertidamente. Perdido naquele infinito azul, Ulisses se sentiu tão em paz que perdeu a noção do tempo, do espaço, da vida e da morte. Percorreu toda a sensação de existência, mas tomou cuidado para não ir muito longe, teve medo de se perder novamente em outra viagem astral. Sua família não compreenderia, naturalmente, e ficariam todos chateadíssimos com ele novamente. Quando um pássaro passou e o despertou do devaneio celestial, lhe veio à consciência a decisão de esclarecer tudo com a sua família. Faria um churrasco no quintal naquela noite e todos comeriam cachorros quentes, picanha, linguiça, pão com pasta de alho e cebola na brasa.
Era sábado e Ana estava no trabalho, mas Alexia estava em casa, deitada em sua cama, perto da janela, lendo um livro. O vento entrava pela janela e ficava dando voltas agitadamente no quarto da adolescente. Brincava, vez por outra, com o cabelo dela e a menina achava muito divertido. Estava lendo Cinzas, um livro de romance escrito por seu pai pouco antes dele morrer eletrocutado. Na verdade, esse livro ganhava uma aura especial, justamente por ter sido o último livro escrito por Ulisses antes de sua morte. Alexia se encontrou perdida na história de um amor impossível entre um cinegrafista profissional e uma empregada doméstica. A história se passava em sua cidade e isso à tornou mais propícia a sentir-se mais próxima da história que estava lendo. Na história, por passarem tanto tempo ocupados com seus respectivos trabalhos, procurando arrumarem dinheiro o suficiente para construírem uma vida juntos, os personagens deixaram, descuidadosamente, o tempo passar. Quando se deram conta já eram velhos demais para apreciarem as coisas que os atraíam quando jovens. Ainda tinham, cada um, seus prazeres na vida, porém, seus gostos eram por coisas novas e específicas para cada e assim, nunca mais se sentiram próximos o suficiente para viverem juntos, apesar da vontade que não passava, na verdade, de uma meta a ser cumprida. Um resquício do desejo intenso que tiveram quando na parte mais intensa de suas vidas. Quando, enfim, ficaram juntos, a moça faleceu na cama do homem, quando estavam prestes a ter sua primeira relação sexual juntos. Alexia chorou durante diversos momentos do livro. Andava meio sensível emocionalmente.
No final da tarde Ulisses ligou o som bem alto dentro da casa, para que ficasse no volume ideal lá fora no jardim. Assim, eles poderiam criar um clima divertido e cinematográfico enquanto conversavam sem ter que gritar. Acendeu, pela primeira vez em mais de uma década, a churrasqueira da varanda e começou a assar a picanha e as salsichas. Atraída pelo cheiro delicioso, Ana foi até a varanda e sorriu ao ver seu marido fantasma utilizando a churrasqueira. Lá pelas nove da noite, Ana, Alexia e Ulisses estavam na mesa do jardim comendo e conversando. Ulisses comia picanha com farofa e molho a campanha. Ana devorava com vontade a sua picanha com arroz branco, farofa e uma salada de maionese com bastante azeite. Alexia degustava, satisfeita, um cachorro quente e bebia suco de plasma de caixinha enquanto seus pais bebiam cerveja Note. Uma cerveja criada por Ulisses e uma amiga da vizinhança. Era uma cerveja específica para o inverno. No centro da mesa, uma panela com água fervente borbulhava com a garrafa escura da cerveja em seu interior. Com a cerveja quente, Ulisses pegava-a com o suporte e servia a caneca de madeira que Ana tinha na mão e depois servia-se generosamente. - Gente. - começou Ulisses. Por dentro estava ansioso e inseguro, mas tinha consciência que de por fora ninguém podia dizer. - Gostaria de colocar as coisas em ordem hoje, ok? Queria conversar sobre nós com vocês. Alexia não disse nada, mas não pareceu incomodada com a proposta do pai, apesar de, naturalmente, um pouco entediada. Ana estava bastante contente e por isso simplesmente concordou, saboreando sua deliciosa refeição sob um incrível luar de inverno. - Bom... Ana. Eu gostaria de dizer que te amo. E estou disposto a ter uma vida maravilhosa e repleta de emoções e alegrias ao seu lado. Sem saber o que responder, Ana simplesmente balançou a cabeça afirmativamente. Alexia, por sua vez, fingiu ignorar. Mas sabia que a próxima fala de seu pai seria dirigida à ela. - E eu preciso saber que você está feliz, Alexia. E também preciso saber o que vocês precisam que eu explique para que todos nós possamos ficar em sincronia. - Ah, pai. Eu estou bem. - respondeu Alexia. Ulisses olhou para Ana e vendo que ela só lhe olhava sem nada dizer, ele encheu o copo dela de cerveja. Mais tarde, quando Ana já estava bêbada e disposta a conversar mais e Alexia um pouco menos entediada, Ulisses procurou instigar nelas a vontade de se exporem à sua própria exposição. - Gente, vamos começar do início. Eu morava em uma casa que mais parecia uma cabana nos recantos longínquos dessa cidade. Em meio à arvores obscuras, mas tinha uma linda pontezinha sobre um laguinho charmoso na entrada. Morei sozinho lá por um bom tempo e escrevi alguns livros. Os que os mais gosto, pelo menos. Uma das minhas melhores amigas, cujo o nome, vergonhosamente, eu não me lembro, era a dona dessa casa aqui. Eu vim em uma festa aqui uma vez e conheci o marido dela. Uma pessoa maravilhosa. Ela faleceu um dia, já bem velhinha e eu nunca mais soube do marido dela. Conforme eu consegui ganhar mais dinheiro com as vendas dos meus livros, eu contratei uma empregada doméstica para limpar as coisas em casa. Ana e Alexia ouviam a história com genuíno interesse. - Então... ela era uma jovem muito bonita e eu gostaria de ter uma família. Estava cansado de ficar sozinho. Ulisses encheu o seu copo e o de sua esposa. Alexia pediu que ele pausasse a história, pois queria ir até o porão pegar uma garrafa de vinho com plasma. Enquanto Alexia foi lá embaixo, Ana perguntou sobre Cibele. - Já vou chegar lá, querida. Espere Alexia voltar. Quando Alexia voltou, Ulisses abriu para a filha a garrafa de vinho e serviu uma taça para a menina. - Bom... voltando à história. - Ulisses deu uma pausa. - onde eu estava mesmo? - Sua nova empregada doméstica, pai. - ajudou-o Alexia. - Ah, sim! Isso. Bem, então eu achei essa menina muito bonita e decidi que gostaria de ter uma família com ela. Ela correspondeu e nós começamos a ter um romance. Ana se sentia um pouco desconfortável com essa parte da história e Ulisses sabia. Mas gostaria que Ana se sentisse confiante e confortável. Por isso, continuou a história. - Então saímos por algum tempo, mas nunca tivemos a oportunidade de fazer um filho ou filha. Ana e Alexia se sentiram visivelmente desconfortáveis com essa informação direta. Ulisses ignorou e continuou: - Então eu comprei esta casa e me mudei para cá. Convidei Cibele para vir me visitar e então percebi como ela havia envelhecido. De qualquer forma, ela continuava charmosa e linda aos meus olhos apaixonados. Então, precisamente na noite em que tentamos ter uma relação mais íntima, na noite em que nos unimos na cama e tencionamos começar uma família, aquele treco encapuzado desceu em meu quarto e a solicitou. Ela, de bom grato, foi-se. - Que triste. - disse Ana sarcástica. Ulisses percebeu uma luz branca surgir atrás de si e o olhar indiferente de Alexia só confirmou a presença de Snypes. Ulisses imaginou-se levantando-se com normalidade, virando-se, em sua imaginação, de maneira comum, deixando Snypes confortável com seu sorriso triunfante no rosto resplandescente e transparente e então acertando-o no nariz com força. Um brilho, então, explodiria do impacto dos dois fantasmas e Snypes iria parar no cemitério. Ana arregalaria os olhos e serviria-se de mais bebida. Alexia sorriria e terminaria sua taça de vinho com plasma. Ulisses imergiria na grama, desaparecendo e reaparecendo subitamente segundos depois enquanto Snypes se levantava. Ulisses surgiria, então, do chão, agarrando Snypes e carregando-o para o céu noturno em altíssima velocidade. Ana e Alexia assistiriam o decolar dos fantasmas em uma velocidade absurda. Como uma estrela cadente incandescente eles subiriam aos céus até parecerem um pontinho brilhoso longínquo. Na lua, Ulisses soltaria Snypes e lhe daria um chute no rosto com força, fazendo-o voar até uma colina. - Eu quero que você pare de me encher a paciência, Snypes. Fui claro? Snypes estaria assustado e concordaria. - Eu sei que você vai voltar e você sabe o que vai acontecer se você voltar. Dito isso, Ulisses pularia e voaria em direção ao seu planeta. Chegando na cidade, puser-se-ia a caminho de sua casa. Chegando em casa, após terminar sua aventura mental, ansioso, queria resolver logo a questão. - Olhem, minhas queridas. Eu só quero que vocês entendam plenamente que eu só quero ser feliz e fazer feliz quem me cerca. Só isso. E além disso, quero que vocês entendam que ser feliz é mais importante do que tudo. Isso pode parecer vago, mas é o essencial.
Depois que as meninas foram dormir, Ulisses considerou suas palavras e decidiu ir até o cemitério. Contemplou em dúvida a lápide de Cibele. Estava certo de que a deixaria descansar em paz, mas se lembrou de todo o amor interrompido. Os sentimentos verdadeiros da época terminal em que escrevia Cinzas tomaram consistência em seu coração. Algo como o passado lhe cairia bem. Pensou no que Ana iria pensar, em como Alexia reagiria, em como iria explicar tudo para Cibele e como ele próprio lidaria com toda essa revolução, mas seu subconsciente falava mais alto, muito embora ele não pudesse ouvir distintamente, que ele deveria simplesmente buscar o que lhe agradava. No dia seguinte, amanheceu em sua cama, pensando no que havia feito na noite anterior, mas não conseguia se lembrar de nada. Contudo, conseguia saber em sua mente que havia bebido bastante cerveja com sua esposa e que havia ido ao túmulo de Cibele. Também, finalmente, começou a se dar conta de que havia se tornado novamente uma criatura feita de carne, osso e tudo mais. Porém, infelizmente não conseguia se lembrar do momento em que se tornara aquilo que ansiava voltar a ser. Adormeceu, portanto, novamente, nessa tentativa.





""Não fique triste," ele disse, dando-lhe um abraço. "Eu vou carregar esta asa com orgulho, como símbolo do amor de uma maravilhosa irmã.""
(Hans Christian Andersen, em Os Cisnes Selvagens) 

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