segunda-feira, 1 de julho de 2013

Episódio 4

Os Reflexos Cintilantes da Escuridão dos Sentimentos Genuínos
Cansada e ainda demasiadamente estressada, Ana despediu-se da amiga que lhe dera carona do trabalho até sua casa e começou a caminhar tensamente pelo caminho entre a calçada até a escadinha que levava à porta de entrada de sua casa. Olhando para o lado, involuntariamente, percebeu a lua, que estava gigantesca naquela noite. Ana sentiu uma grande sensação de alívio inexplicável naquele instante. O impacto que aquela visão teve em sua noite foi tão instantânea e poderosa que deixou Ana um tanto atordoada. Olhando para trás, num impulso bobo e distraído de saber se estava sendo observada por algum vizinho ou passante, quase não percebeu a presença de um homem vestido com calça, sapatos e terno pretos do outro lado da calçada. Com a cabeça curvada sobre as mãos, ele acendia, com dificuldade, um cigarro. Estava ventando bastante naquela noite. Ana tentou parar de olhar antes que o homem a visse o observando, mas foi tarde, pois, o homem já a estava observando antes de ela notá-lo. Os olhos do homem, claramente estavam direcionados à moça. Ana estava tão cansada que simplesmente se virou e caminhou até a porta de sua casa. Mas enquanto procurava a chave correta, Ulisses atravessou a porta com um olhar furioso que somente Ana podia identificar, qualquer outra pessoa viria uma feição comum e despreocupada. - Que susto!   - Quem é aquele cara? - perguntou Ulisses.
- Eu sei lá.   Quando encontrou a chave correta, destrancou a porta e entrou em casa. Mesmo sabendo que Ulisses podia atravessar portas, não fechou a porta até que ele entrasse, por questão de educação e costume. Depois que ele entrou, fechou a porta e a trancou, usando todas as fechaduras. Afinal, por mais que não demonstrasse, imaginou que, talvez, aquele homem poderia ser uma possível ameaça. Depois que começou a trabalhar com jornalismo começou a desenvolver certas paranoias.
Durante o jantar, Ana e Ulisses conversaram sobre a situação da vida alienígena que nascera da louça suja de algum vizinho. Ana estava sobrecarregada justamente por causa do caos que essa notícia havia causado no jornal onde trabalhava.   - Mas então é sério mesmo essa história, Ana?
- Pior que eu acho que é sim. Ulisses divertiu-se com isso. - Isso vai ser interessante. - Enfim. Ana terminou seu suco de plasma enquanto Ulisses a observava.   - Alexia tomou um porre hoje. - disse Ulisses rindo.
  - O que? - perguntou Ana, perplexa.
- Pois é. - disse Ulisses. E Ana entendeu ali um pedido de desculpas nada sincero. De qualquer forma, Ana estava muito satisfeita, pois o dia no trabalho, apesar de ter sido bastante cansativo, não havia saído de controle. Tinha conseguido dar conta de todas as suas tarefas e sair no horário previsto. No dia seguinte, seria sua folga semanal. A primeira da qual ela usufruiria de verdade nos últimos três anos. Por isso, estava bastante tranquila e, até mesmo feliz naquela noite. Rindo, perguntou onde sua filha estava e seu marido comentou, descontraído, que a adolescente estava dormindo. No dia seguinte. Quarta feira. Ana acordou tarde, conforme havia planejado. Ulisses, para variar, não estava ao seu lado na cama. Como era desde que este havia morrido, há catorze anos atrás. Eram seis e meia da manhã e o quarto ainda estava escuro. As cortinas da janela perto da cama balançavam sutilmente. Através da vidraça cristalina ela observou, ainda bastante sonolenta, mas extraordinariamente contente, as nuvens se moverem lentamente pelo céu. Essas nuvens eram densas e muitas delas pareciam carregadas de chuva. Um vento desceu dos céus para soprar a casa dos Alves e Ana abriu a janela para receber o convidado celestial. Fechou os olhos e respirou fundo, deliciando-se consigo mesma viajando por uma longa estrada deserta, localizada em sua imaginação. Montada na motocicleta herdada de seu marido, ela percorria velozmente o asfalto limpo em direção ao horizonte, no qual se escondia mais uma infinidade de quilômetros em estrada limpa que levava ao nada absoluto. Abriu os olhos, decidida à viajar.   Depois do café da manhã, Ana foi contente até o quintal, na parte detrás da casa, com um dos primeiros livros de seu marido em mãos. O nome do livro era A Casa dos Esquecidos. Ulisses, segundo dizia na introdução, morava em uma casa de madeira, rodeada de árvores, em um recanto distante, mas nem tanto, do centro da cidade. Ele vivia sozinho e não se lembrava da vida que o levou até ali. Ulisses dizia, claramente, e é claro, com o bom humor que lhe era característico, que acreditava ser vítima de algum tipo de amnésia.
  Quando terminou de ler o livro, Ana, intrigada, desceu até o porão debaixo do cemitério. Ao descer as escadas e se encontrar no escuro absoluto, concentrou-se em manter os olhos abertos, afim de fazê-los acostumarem-se com a falta de luz do ambiente. Isso não demorou muito. Logo seus olhos começaram a contornar as formas dos móveis e artefatos estranhos e antigos.
  Os sete anos nos quais Ulisses se fez presente em forma fantasmagórica, foram, igualmente fantasmas para Ana. A presença desse marido transparente não era consistente para ela. Lhe pareceu, então, repentinamente impressionante, que não houvesse tido antes essa percepção. Assim sendo, a moça começou, tardiamente, a questionar certas coisas. Aproximou-se do espelho do canto no final do ambiente. Imerso na escuridão, mas emanando uma fraca luminosidade própria muito suave, que conseguia, impressionantemente coexistir com a escuridão que o rodeava, sem anulá-la. Quando a moça estava de frente para o espelho, começou a observar-se. Começou do topo da cabeça, de onde se desprendiam fios de cabelos loiros encaracolados que terminavam na altura do pescoço. Um par de olhos dourados reluziam na pouco iluminação do lugar e lhe diziam muitas coisas ao mesmo tempo. Ana desviou o olhar de seu próprio olhar no espelho mágico e observou seu corpo inteiro. Usava um bracelete no braço esquerdo, o qual ganhara recentemente de seu pai. Vestia uma blusinha rosa com detalhes transversais pretos e, por cima, uma jaqueta branca sem mangas. Seu umbigo ficava à mostra. Sua pele era morena e seu corpo magro e bem torneado. Usava um shortinho jeans com um cinto preto largo. Ana sentia-se completamente satisfeita com a sua aparência. Contudo, fez força para voltar a olhar seu próprio olhar no espelho. Se sentiu desnuda, sozinha e confusa.
Feixes de luz dourada desciam pela escada, como raios de sol. Ulisses iluminou todo o lugar com seu brilho dourado. Ana sentiu-se como em outro mundo, à anos luz de distância que qualquer lugar.   - Tudo bem, Ana? - perguntou Ulisses.
Ana não respondeu de imediato, baixou a cabeça e passou a língua nos lábios, afim de umedecê-los. Levantou seus olhos dourados para Ulisses e fitou-o gravemente. E então, de repente disse: - Porque não apareceu antes? Porque ficou observando nosso sofrimento à distância? E à uma distância tão curta. Ulisses, pego de surpresa com essa pergunta cortante, respondeu com seriedade: - Eu precisava conhecer o outro lado da minha vida, Ana. Eu observei a minha vida de todos os ângulos e, quando percebi que não havia mais o que ser visto, eu... bom, me apareceu essa oportunidade de ver as coisas do outro lado do espelho. - Como não havia muita coisa à ser visto? Havia eu. Eu não sou o suficiente? Ulisses tentou responder algo. Mas Ana seguiu em suas observações coerentes, pegando Ulisses de surpresa novamente. - O que tinha essa tal de Cibele, que a tornava tão melhor do que eu? Foi com ela que você passou sete anos de sua morte?   Ana encarava Ulisses com um olhar acusador, triste e solitário. Agora era Ulisses quem se sentia desnudo, envergonhado, acusado, culpado e sozinho.
  - Às vezes, Ulisses, eu até penso que você pode ter se deixado morrer para ir ficar junto da Cibele.
  - Pois não duvide disso! - exclamou Snypes, do um canto escuro atrás das escadas, atrás de Ulisses.
  Agora o ambiente estava ainda mais fantástico e distante de qualquer distância infinitamente distante até mesmo do infinito. O espelho emanava uma luz fraca e contida meio arroxeada, enquanto Ulisses cobria todo o ambiente de uma coloração cintilante de ouro, fazendo tudo ali reluzir lindamente. Ao fundo, Conde Snypes cobria a escuridão com seu brilho prata, tornando tudo ao seu redor monocromático, como um filme antigo onde o branco é prata reluzente.
Ana olhou para Ulisses e nesse olhar se lia uma busca por uma explicação e um verdadeiro suspiro de decepção.   Ulisses gaguejou um pouco e então virou-se para Snypes repreendendo-o.
- Cala a boca seu monte de plasma podre miserável!   Ana atravessou o fantasma de Ulisses com a cabeça baixa, chorando, e subiu as escadas para o cemitério.
- Quem é você, afinal de contas? - perguntou Ulisses, quando foi deixado sozinho com o velho fantasma de Snypes. - Agora te interessa, rapaz? - riu Snypes. - É uma pena que você já esteja morto, Sny. - Me matar você não ia. - riu Snypes. - É. Não. - riu Ulisses. Depois ficou sério novamente e advertiu Snypes que não influenciasse mais em sua vida e que ficasse longe de sua família. - Vou fazer um esforço. - debochou Snypes. Ulisses estava de saída, mas se lembrou de algo. Virou-se para encarar o rosto sorridente de Snypes e disse: - Se assim for, terei de me esforçar para manter-me longe da Condessa. Snypes não gostou nada desse comentário. Seu sorriso desapareceu, engolido pela expressão de ódio que tomou conta de seu rosto transparente. - Nós dois temos muitas fraquezas acessíveis. Lembre-se disso, sr. Alves II. Dito isso, Conde Snypes desapareceu na escuridão.






"Educação é o que resta depois que a gente esqueceu tudo que aprendeu na escola."
(Albert Einstein) 

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