sábado, 8 de junho de 2013

Episódio 1

Lacuna

O tempo parecia não passar, quando, finalmente, Alexia viu aquela calda invisível atravessar o gramado bem cuidado, acariciando a grama com suas mãos fantasmagóricas. Com o olhar, a menina seguiu o movimento da grama alta até se deparar com as gélidas cercas negras que protegiam-na do cemitério no canto do quintal. Sentada nos degraus da escada, olhava tristonha a hipnotizante dança da água no pequeno lago no outro do quintal, enquanto o vento brincava com suas longas mechas loiras. Não conseguia se concentrar em nenhum pensamento específico. Viajava pelas ramificações de cada ideia que lhe vinha à mente. Quando pensava nas águas do lago à sua frente, lembrava-se da vara de pescar, que poderia pegar na garagem e se distrair. Mas quando lembrava da vara de pescar na garagem, não podia evitar de se deparar com a imagem da moto de seu pai que repousava como uma rainha luxuriosa em sua morava automobilística. E assim, ao pensar na moto de seu pai, obviamente, lembrava-se de seu pai.

- Quer parar com isso? Só porque você pode atravessar as malditas portas, não quer dizer que você precise fazer isso o tempo todo! - disse Ana, repreendendo Ulisses pela quinta vez naquele dia, pelo mesmo motivo.
- Quando sua filha resolver me por em meu corpo novamente, eu prometo voltar a usar maçanetas.
- Eu já falei com ela.
  - E ela?
Ana suspirou.
- Acho melhor você ir falar com ela.

Ulisses estava indo falar alguma coisa com sua filha quando encontrou um mosquito na cozinha. Lembrou-se de que os mosquitos tinham cerca de um mês de vida e percebeu que nunca, em seus catorze anos de vida morto, havia visto um fantasma de mosquito. Isso lhe intrigou profundamente. Decidiu, portanto, passar o resto do seu tempo livre vigiando aquele mosquito até o momento da morte do inseto.

Alexia passou suas férias escolares investindo em sua habilidade de pintura. Deixou sua mente livre, leve e solta. Viajou pelas ramificações obscuras de seus pensamentos incertos e deixou o resultado deslizar pelos seus dedos, através do pincel até as telas em branco por todo o mês de julho. Sua concentração estava afiada e, consequentemente, sua alienação à família estava fisgando Ana e sufocando o fantasma dourado de seu pai, quando este, não estava correndo atrás do mosquito.

- Querida Alexia. - Iniciou Ulisses durando o café da manhã. - Gostastes de meu presente de aniversário de sete anos atrás?
A adolescente balançou a cabeça afirmativamente ao mastigar seu cereal matinal.
Sem conseguir se conter, Ulisses perguntou:
- E você utilizou?
  - O que?
Perguntou a menina, para ganhar tempo.
- O acelerador de partículas! - respondeu Ulisses, ironicamente.
Ana riu.
Visto que Alexia apenas continuou a comer seu cereal sem nada responder à piada do pai, Ulisses insistiu.
- Você esfregou a lâmpada mágica, garota?
Alexia engasgou levemente por causa da pergunta direta. Ana arregalou os olhos para Ulisses rindo, surpresa.
  - Eu esfreguei ela na sua frente. Não lembra, pai?
  Ulisses fingiu que fazia esforço para se recordar do momento em que a pequena Alexia, então com sete anos de idade, passava a borda do vestido vermelho na lâmpada mágica e libertava a genia de sua prisão desconfortável.
- Vagamente. - respondeu.
Alexia olhou para seu pai e sorriu. E então, todos riram na mesa, felizes.




"Numa cidadezinha remota, nasce uma donzela que se manterá imaculada dos erros comuns de sua geração: uma miniatura, no meio dos homens, da mulher cósmica que desposou o vento."
(Joseph Campbell, em O herói de Mil Faces) 

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