domingo, 16 de junho de 2013

Episódio 2


Urgência

       Ansioso, Ulisses atravessou a porta do escritório solitário do terceiro andar, onde caminhava em um eterno círculo de nostalgia há horas. Desceu as escadas sem tocar os degraus, flutuou até a varanda do segundo andar e deixou-se cair vagarosamente, atravessando o piso madeirado, surgindo do teto da cozinha. Parou lentamente na cadeira vazia da cozinha. Ana e Alexia tomavam um animado café da manhã.
       - Não critiquem minha entrada triunfal, família.
       Bem humoradas, as duas riram.
       - Cresce. - disse Alexia.
       - Eu queria virar gente. Literalmente. Mas você não me facilita, queridinha.
       Após o silêncio irritante que se seguiu, Ulisses disse:
       - Enfim. Eu soube que você está escrevendo um novo livro, Alexia.
       A menina ficou indignada e quase engasgou com o suco que bebia.
       - Você andou me bisbilhotando em meu quarto? - gritou.
       - Eu não. - respondeu o fantasma, calmamente. Ana se limitava a esvaziar lentamente, através do canudinho vermelho, sua caixinha de suco. Olhava de um para o outro, com as sobrancelhas ligeiramente erguidas.
       - Então como você sabe disso?
       Alexia levantou-se para sair, mas enquanto colocava a cadeira no lugar, aguardava, com olhos furiosos, a resposta do pai.
       - Snypes me contou.
       Alexia retomou o controle de seu humor e ao invés de gritar furiosamente e lançar a cadeira, que ainda segurava, pela janela da cozinha, conforme gostaria, permaneceu apenas perplexa.
       - Aquele fantasma nojento.
       Virou-se e sumiu da cozinha com raiva.
       - É um babaca mesmo, aquele Snypes. - afirmou Ulisses para Ana, que sacudiu os ombros mostrando neutralidade. Mas, na verdade, não gostou nem um pouco da ideia daquele velho fantasma encardido entrando no quarto de sua filha à noite e espiando o que a menina fazia.
       - Tenho que ir, querido. Está um caos no trabalho. Surgiram boatos de que formas de vida alienígena brotaram da louça suja de uma casa do bairro. - disse Ana, levantando-se apressadamente e jogando a bolsa no ombro.
       - Não ouvi nada a respeito. - respondeu o marido, divertindo-se com a novidade.
       - Ah, vai ouvir o barulho que isso vai gerar. Logo, logo.
       - E qual a sua opinião à respeito disso, Ana?
       - Eu não acredito. Acho que são boatos bobos.
       Com pressa, despediu-se e saiu da cozinha.

       No final da tarde, enquanto o mundo afundava em um sonho lilás róseo e apaixonante, Alexia olhava através da vidraça da janela e observava um homem de terno preto visitar a casa do outro lado da rua. A menina se deu conta, com certa tristeza, de que não conhecia nenhum de seus vizinhos. Se imaginou com um binóculo em mãos vigiando a rotina da vizinhança para, no momento oportuno, como quem não quer nada, aproveitar, ou até mesmo criar, uma situação em que pudesse introduzir-se e cumprimentar algum deles. Enquanto isso, o homem do terno preto interrogava a sua vizinha da frente. Infelizmente, Alexia não conseguia ver a vizinha da frente, pois a varanda do andar de cima cobria a pessoa da cintura para cima. Alexia se lembrou, de repente, que haviam se passado sete anos desde que seu pai lhe presenteara, em seu aniversário de sete anos, com uma lâmpada mágica. Agora, em seus catorze anos de idade física e seus séculos de idade mental, compreendia que seu pai lhe havia feito uma desesperada, porém sutil e delicada, solicitação de resgate. Naquela manhã, durante o café da manhã, ele havia claramente dito que gostaria de voltar à vida carnal. Estava tudo nas mãos de Alexia. Agora, seria ela a lhe dar a vida. Quantas pessoas no mundo tinham a oportunidade de dar à luz seu pai? Ela não conhecia ninguém com esse privilégio. Sorriu diante essa possibilidade inusitada, enquanto o homem de terno preto, na calçada do vizinho, acendia um cigarro cuja fumaça espiralava lindamente para os céus.

       Ulisses tinha tanto o que pensar, que preferiu não pensar em nada. E o nada, lhe parecendo vazio, lhe preencheu de alívio e urgência. O que lhe trouxe dúvida e inquietação. Queria ir procurar Conde Snypes e irritá-lo a ponto de este perder a razão e permitir à Ulisses a deliciosa perda da noção. Gostaria, também, de ir até o quarto de sua filha e conversar com ela sobre tudo e sobre nada. Queria fumar um cigarro ou beber uma bebida forte, mas, ao mesmo tempo, gostaria de saber que não beberia e nem fumaria nada. Subiu, então, flutuando livremente até o telhado. De lá viu sua filha correndo, à meia noite, sob uma chuva espessa e bem intencionada, pelo cemitério particular da residência. Ela parecia tão cheia de vazio quanto ele.





"Gostei de saber que estás buscando uma vida confortável em Karlsbad e conseguindo escrever, pois acredito que esta, para ti, é a melhor combinação. E deve ser muito bom escrever alguma coisa."
(Anna Freud em correspondência a seu pai Sigmund Freud, no livro Correspondência, organizado por Ingeborg Meyer-Palmedo) 

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