domingo, 23 de junho de 2013

Episódio 3

Madrugada

  Alexia desceu as escadas. Olhou rapidamente para o túmulo de seu pai, enquanto descia as escadas para o grande cômodo que ficava embaixo do cemitério. A menina estava completamente confusa e aflita. Não sabia exatamente porque estava ali embaixo. Estava assustadoramente escuro e as silhuetas das coisas esquisitas que sua mãe mantinha ali embaixo pareciam observá-la, fazendo-a sentir-se uma intrusa. Foi assaltada por um gélido arrepio que lhe fez tremer os ossos e correu para acender a luz. Ligava e desligava o interruptor e nada acontecia. Respirou fundo e observou o ambiente. Seus olhos agora já estavam acostumando com a escuridão e, assim, conseguia visualizar melhor as formas dos móveis estranhos que moravam ali. Se esforçou para se lembrar o que havia ido buscar ali, enquanto caminhava para o centro do lugar. Cercada pelos móveis e adornos esquisitos e exóticos lembrou o que a levara até ali. Uma repentina explosão sentimental que estava guardada dentro dela desde que começou a ter consciência de que existia. Uma necessidade que crescia dentro dela desde seus quatro ou cinco anos. Alexia queria extravasar sua alegria. Estava guardando energia desde sempre e nunca deixava essa força fluir. Sempre que pulava, correria ou dançava, era comedida. Seu pescoço doía pela tensão aplicada na musculatura para que a cabeça se mantivesse frequentemente em uma posição que não fizesse sua franja mudar de posição. Arrumava o vestido o tempo inteiro. Fazia um esforço vinte vezes maior que qualquer pessoa para fazer coisas comuns, como levar o lixo para fora, conversar, andar ou sorrir, pois depositava a cada uma dessas simples práticas cotidianas uma rigorosa atenção para que fossem concluídas da melhor maneira possível. Assim, não conseguia manter um diálogo normalmente, pois tinha que pensar muito antes de responder, para que a resposta fosse correta e agradasse à si mesma e ao seu interlocutor. Assim sendo, Alexia vinha acumulando uma angústia dentro de si desde criança e, agora, com seus dezessete anos, com as dúvidas e ansiedades naturais da adolescência, seu corpo compacto e delicado, se tornou sufocantemente pequeno para tanta força querendo escapar. Deixou a monstruosa força desconhecida que havia dentro dela esvair lentamente e se misturar com o obscuro desconhecido que parecia emanar daquele local de sombras e mistérios.
  Quando Ulisses finalmente chegou ao porão sob o cemitério, iluminando com sua luz dourada todo o ambiente, encontrou um par de olhos claros e brilhante. Só não pode perceber, de imediato, que aqueles olhos estavam fascinados pela luz que o espírito de Ulisses emanava naquele lugar de trevas. Alexia estava encolhida em um canto, entre a adega de madeira que Ulisses trouxera da França, quando lá esteve, e a estátua do gárgula. Ao menos parecia um gárgula. Ulisses nunca se deu ao trabalho de se preocupar com o que aquilo de fato era.
  - Está tudo bem, filha?
Alexia sorriu e, somente agora seu pai percebeu a garrafa de vinho ao lado da menina.
  - Posso? - perguntou Ulisses.
  Alexia balançou a cabeça afirmativamente e Ulisses pegou a garrafa. A garrafa não ficava firme, flutuava sob os dedos do fantasma.
  - Gostou desse, filha?
  Alexia apenas sacudiu a cabeça, dizendo que sim.
  - Que bom. Foi caro pra caramba, sabia? - Disse ele, rindo sonoramente.
  A menina também riu.
  - Eu nunca havia bebido nada alcoólico antes. - revelou a menina.
  - Sério? Nossa, presenciei uma primeira vez sua!
  Dito isso, Ulisses ergueu a garrafa.
  - Um brinde à isso! - e bebeu do gargalo, passando, em seguida, a garrafa para a menina.
  Alexia pegou a garrafa e tomou um longo gole.
  - Nossa. - começou Ulisses. - eu perdi tanta coisa.
  Houve uma pausa, na qual pai e filha compartilharam de um mesmo sentimento amargo, sensível e promissor.
  - Na verdade, não perdeu muita coisa.
  - Como não, Alexia?
  A menina tomou mais um longo gole da bebida, deixando apenas um quarto do vinho na garrafa e passou o recipiente alcoólico para o pai.
  - Em mim, você só veria silêncio. E em mamãe, somente estresse. Mas, curiosa e interessante deve ter sido sua vida... ou morte. Sei lá como chamar sua situação.
  - Hmm. Eu não sei se palavras como vida e morte podem definir qualquer estado da existência de alguém precisamente.
  - Algo me diz que eu estou longe de compreender o que você está prestes a começar a me comunicar. - disse isso sorrindo,   Alexia.
  Ulisses sorriu, satisfeitíssimo, e respondeu:
  - Você tem toda razão, Alexia.
  Cada um bebeu um gole generoso e terminaram aquela garrafa de vinho. Ulisses aconselhou Alexia a não abrir uma nova. Porém, visto que a menina insistiu, ele a fez beber meio litro de água antes. A menina obedeceu, e então, abriram uma outra garrafa e continuaram a conversa, que foi muito esclarecedora para Alexia. Ela nunca havia pensado na vida e na morte como uma coisa só. Como algo bom e harmonioso. Ulisses, pela primeira vez em sua existência consciente, teve um momento de proximidade com sua filha, e por isso, estava extremamente feliz. Afinal, no fundo, não conhecia ninguém direito. Havia conhecido Ana de repente, casou-se com ela rapidamente e morreu logo depois. De fato, era a primeira vez que conversava com Alexia de verdade. Até então, desde que se apresentou como seu pai na festa de sete anos da menina, apenas convivia com ela.




""Mas tenho de matá-lo", murmurou o velho. "Em toda a sua grandeza e glória. Embora seja injusto. Mas vou mostrar-lhe o que um homem pode fazer e o que é capaz de agüentar. Eu disse ao garoto que era um velho muito estranho. Agora chegou a hora de prová-lo.""
(Ernest Hemingway, em O Velho e o Mar) 

Nenhum comentário: