domingo, 31 de março de 2013

Episódio 03


Um Golpe Sangrento em Hong Kong


       A filha estava na escola e só havia Ana e o mordomo, cujo nome ela nunca se dera o trabalho de tentar não esquecer. Vagando pela imensa casa, entendiada e quase caindo naqueles pensamentos malditos sobre ressuscitar seu marido morto, resolveu ocupar a cabeça e praticar um pouco de sua habilidade em escrita. Subiu até o terceiro andar da casa e entrou naquele ambiente carregado de sentimentos intensos. Passou pela estante que guardava as "horcrux" de Ulisses e sentiu o ar gelado que subia da mancha negra no chão e pairava envolta do aparelho de som. Com o costumeiro impacto sentimental, localizou o notebook vermelho dobrado sobre a escrivaninha. Ignorou tudo isso da maneira que conseguia e, corajosamente tocou o computador. Desdobrou o aparelho e ligou para começar a escrever.
       Pensou em escrever algo que sua filha pudesse usufruir quando já não tivesse a companhia da mãe. Poderia registrar ali quem ela realmente era, e a filha, quando crescesse e lesse, iria realmente conhecer a sua mãe. Conseguia imaginar Alexia sorrindo ao saber como a mãe gostava de viajar e aprender coisas novas, conheceria o lado leve, divertido e despreocupado de sua mãe. Será que Alexia traçaria esse paralelo entre o que a mãe tinha que ser e o que a mãe era de fato, e encontraria a explicação de porque sua mãe não se comportava como realmente gostaria?
       Ana gostaria de saber porque ela aceitou tudo isso, porque largou o violão e começou uma carreira jornalística? Porque educou Alexia de forma tão coerente e disciplinada? Porque não se deixava ser ela mesma, se vestir como ela mesma e ensinar isso à filha? Afastou todas essas dúvidas de sua mente e começou a escrever algumas linhas. Intitulou o livro como Um Golpe Sangrento em Hong Kong, dando sequencia ao best-seller de seu marido chamado Um Drink Sangrento em Paris, escrito logo que ele voltou de sua maravilhosa viajem à Paris, antes de conhecer Ana. Essa decisão de escrever a continuação do livro fez Ana ficar um pouco chateada consigo mesmo, afinal, estava novamente se veiculando ao seu marido morto de uma forma covarde. Negando suas próprias perspectivas. Mas por outro lado, não via nada demais em escrever um romance de mesmo molde que o iniciado por Ulisses, para expressar suas ótimas experiências na China. Inclusive, ela não via a hora de voltar lá para desenvolver ainda mais suas habilidades nas artes marciais, era extremamente divertido bater naquele boneco de madeira e quebrar tábuas. Estava, também, ansiosíssima para entrar em uma competição e vencer alguém em uma luta. Acrescentou, então, todos os seus desejos na narrativa, onde ela seria uma mestre das artes marciais envolvida em uma trama complicada e violenta na qual seria a heroína que usaria seus punhos e sua inteligência afiada para salvar Hong Kong de um complô sobrenatural, ou algo assim. Começou a digitar e sentiu uma boa sensação de liberdade. Era difícil, entretanto, porque sua mente lhe fazia retornar às responsabilidades da sua vida corrida e pesada. Somente com grande força de vontade ela deixava pra lá as questões de seu presente e buscava informações daquela viajem agradável para embelezar cada detalhe de cada pequena recordação na tela à sua frente.
       Às três da tarde viu o ônibus escolar parar em frente à sua casa e ouviu Alexia se despedindo de seus amiguinhos. Apesar de séria e fria por padrão, a menina era muito agradável quando lidava com as pessoas. Ana enviou por e-mail alguns capítulos para seu editor e desceu para ficar um pouco com sua filha.
       O mordomo raramente fazia comida e a menina era obrigada a comer sobra de bolo da geladeira e isso a deixava muito irritada com o mordomo, cujo nome ela nem queria mais saber. Provavelmente aquele preguiçoso estava dormindo no porão, embaixo do cemitério, onde ficava uma espécia de quartinho que Ana montou para ele, do lado direito da escada. Alexia achava ele um péssimo mordomo, pois nunca via ele arrumar nada.
       Sua mãe se sentou à mesa com uma caixinha daquele misterioso suco vermelho de costume e Alexia, pela primeira vez se deu conta de que nunca havia visto sua mãe consumir qualquer outra coisa, a não ser aquela bebida com cor de sangue. Por outro lado, Alexia também não se lembrava qual foi a última vez em que comeu outra coisa que não fosse resto de bolo de aniversário ou torta de limão. Durante a conversa, Ana contou à filha sobre o livro que estava escrevendo, o que fez Alexia confessar que também estava escrevendo um livro. Ana ficou surpresa e muito satisfeita com a notícia e, é claro, absolutamente curiosa sobre o conteúdo. Mas, quando a filha anunciou o título da obra, Ana ficou um pouco apreensiva.
       - Meu Fantasma Favorito! - exclamou Alexia. - oque acha, mãe?
       - É um bom nome. Mas qual o significado?
       Com naturalidade, olhando para o pedaço de bolo velho que levava no garfo até sua boca, a menina respondeu.
       - Quer mesmo saber?
       - Claro que quero. - respondeu Ana sorrindo.
       Alexia arregalou um pouco os olhos cor de mel e disse à mãe que andava ouvindo barulhos estranhos e luzes se movendo pela casa durante a noite. Achava que se tratava de fantasmas.
       - Mas pode ser qualquer outra coisa, Alexia. As luzes podem ser os faróis dos carros que passam de madrugada, e existem milhões de possibilidades para esses barulhos.
       - Eu vi o fantasma. - anunciou Alexia de forma súbita e triunfante.
       Ana riu, mas sabia que a filha não estava brincando.
       - E como ele era? - perguntou, dando-se por vencida.
       - Ele era brilhante, transparente e meio amarelado. - a menina parou e olhou para cima com o dedo indicador no queixo, muito pensativa e, apressadamente, após somar todas as características que havia descrito, divulgou o resultado rapidamente, com medo de perder a oportunidade de parecer muito esperta e pouco objetiva e prosseguiu - Era dourado! - fez uma pausa para comer o bolo e continuou - Eu abri a porta do meu quarto sem fazer barulho para ele não me ver. Eu só vi ele de costas e então ele desapareceu em uma nuvem de fumaça mística e colorida.
       - Você tem certeza que você não sonhou isso?
       - Não. Não tenho certeza. Afinal de contas, às vezes tenho sonhos muito vívidos.
       As duas terminaram suas respectivas refeições e Ana deixou Alexia na mesa fazendo sua tarefa de casa, enquanto encaminhava-se para o escritório no intuito de escrever um pouco mais. Antes de sentar-se à frente do computador, deu meia volta e ligou o maldito aparelho de som. Uma deliciosa música japonesa soava do gramofone do aparelho. A moça riu da coincidência e foi sentar na cadeira da escrivaninha para continuar escrevendo Um Golpe Sangrento em Hong Kong.






"- Acho que acabei o que tinha que fazer aqui em cima - disse ela, sentindo-se subitamente hesitante. - Estou indo. Tchau. Ela esperou. Pelo quê, não sabia. Não houve nada. Havia uma sensação de algo. Ergueu a mão como se fosse dar adeus, então a deixou cair de volta, envergonhada. Abriu um pequeno sorriso e uma lágrima escorreu pelo seu rosto, sem que ela percebesse. - Eu te amo, querido. Tudo na mesma. Lisey desceu as escadas. Por um instante, sua sombra continuou lá em cima, e então também foi embora. A sala suspirou. E então caiu em silêncio."
(trecho do livro Love - A História de Lisey, de Stephen King)



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