sábado, 23 de março de 2013

Episódio 2

Os Diamantes não são Eternos


       O vento lá fora assobiava e jogava algumas folhas secas contra a vidraça da janela do antigo escritório de Ulisses. Olhando para o notebook de cor vermelho-vinho sobre a escrivaninha, Ana pensou em mandar Alexia entrar, pois o vento lá fora parecia estar bem frio. No entanto, não havia nada para se fazer no quintal, a não ser prestar luto àqueles tantos mortos do cemitério que Ana montou na parte de trás da casa, perto da garagem. Ana sabia que sua filha não tinha o menor interesse em ficar olhando aquele pequeno cenário feio e melancólico e logo, logo a menina entraria para estudar alguma coisa. Ana tinha muito orgulho de sua filha, pois era uma menina séria e educada. Fazia sempre seus deveres de casa, lia muitos livros e aprendia tudo muito rápido. Se não se enganava, achava até que a menina estava escrevendo um livro naquele mesmo computador vermelho onde seu falecido marido escrevia seus sucessos dia e noite. O orgulho pela filha e a admiração pelo marido lhe trouxeram aos lábios um ligeiro sorriso que ela só percebeu quando este se apagou, no momento em que seus olhos encontraram aquela mancha negra no chão, ao redor da base do aparelho de som que causara a morte de seu marido. A visão da mancha mortal lhe levou embora o sorriso e, em troca, trouxe à sua mente, uma avalanche de lembranças que rolavam para lá e para cá deixando-a meio tonta.
       Tudo havia acontecido rápido demais, e agora, essa lacuna que ela deveria preencher com essa busca inalcançável de trazer Ulisses de volta lhe deixava aflita. Por isso ela abriu mão de cultivar frutas, legumes, plantas, etc no fundo do quintal e transformou seu pequeno jardim em um cemitério, onde colocou as lápides que encontrou na casa assim que se mudaram para lá. Fez uma lápide para Ulisses e outra para essa tal de Cibele, cujas cinzas seu ex-marido deixava na escrivaninha, ao lado do computador. Ana nunca o ouvira dizer uma palavra sobre Cibele, mas ela devia ter grande importância para Ulisses, afinal, quando morreu, ele estava escrevendo um romance chamado Cinzas e Ana imaginou ali uma conexão. Apesar da óbvia curiosidade, não estava com disposição de ler os capítulos que já estavam prontos.
       O casamento deles durou alguns poucos dias e Ulisses passava a maior parte do tempo escrevendo. Então, ela começou a conhecê-lo melhor depois que passou a ler seus livros, após a sua morte. Quando estava lendo A Casa dos Esquecidos, ouviu Alexia chamar.
       - Oi, filha! - respondeu.
       - Onde você tá, mãe?
       - Estou no escritório de seu pai! - teve que gritar novamente, pois a porta estava fechada e o escritório ficava no terceiro andar da casa.
       Alexia subiu as escadas devagar, apesar de estar ansiosa. Ela tinha esse rigoroso autocontrole, essa mania de manter seu comportamento sempre adequado, ignorando se seus sentimentos pedissem urgência em algum caso. Ana não pôde evitar um sorriso resultante de orgulho com uma pequena dose de pena. Às vezes gostaria que Alexia fosse uma menina normal e que se deixasse levar pelas necessidades de chorar, gritar, andar desajeitada e falar livremente aquilo que lhe viesse à cabeça, sem ficar filtrando cada sílaba antes de se pronunciar em qualquer assunto que seja.
       A menina bateu à porta e a mãe lhe mandou entrar.
       - Mãe, a senhora sabe onde estão os pincéis e a aquarela? Eu quero pintar.
       - Eu não sei, filha. Eu não mexo no cavalete. Tem certeza de que não está no próprio cavalete?
       Alexia fez cara de pensativa, com a mão no queixo e tudo, e Ana achou aquela expressão muito engraçada.
       - Ah, deixa! Eu vou perguntar ao mordomo. A função dele é colocar as coisas no lugar certo. Se ele não souber onde está, é porque não está no lugar certo, e se não está no lugar certo...
       - Alexia. - Ana interrompeu a menina com um tom sério, mas ainda assim, sem ser rude. - O mordomo tem nome.
       A menina fez novamente aquela cara de intrigada e perguntou:
       - E qual é o nome dele?
       Ana pensou um pouco, mas não conseguiu se lembrar.
       - Godofredo, ou algo assim. Pergunte para ele, Alexia. - disse com um aceno de mão, como que para encerrar o assunto.
       A menina concordou, virou-se, fechou a porta delicadamente quando saiu e desceu as escadas até o primeiro andar.
       Ana retomou a leitura de A Casa dos Esquecidos. Era incrível a proximidade que ela sentia com seu marido quando lia suas histórias, era realmente como se ele não houvesse partido para sempre. Ela podia ler a sua voz em cada linha. Conseguia imaginar seu sorriso ao narrar certas frases, conseguia visualizá-lo levantando e dando uma volta pela casa para pescar no ar de um cômodo qualquer a próxima frase. Como ela o sentia cada vez que lia um livro seu! Mas essas leituras, a visão daquele computador, o cheiro e a luz daquele escritório, a mancha macabra no chão e o cemitério lá fora, só faziam crescer dentro dela aquela impossível responsabilidade de trazer seu marido de volta, para que pudessem viver aquilo que não tiveram tempo de viver. Essa responsabilidade lhe sufocava, e quando a sensação dessa obrigação absurda ia embora, um sentimento longínquo, fraco, mas poderoso, começava a tomar forma no fundo de sua mente, alma ou coração. Algo traiçoeiro lhe dizia que, de fato, ela não sentia tanta falta assim de Ulisses. Afinal, eles se esbarraram subitamente na calçada de um bar que havia acabado de fechar. Sentaram-se na calçada e ficaram conversando até de madrugada. Foi tão agradável, diferente, divertido... mágico, devido à impulsividade que os direcionava e à emoção de acontecer algo novo. Fora a adrenalina gostosa de fazer algo incomum, quase errada, de se ficar conversando com um estranho na calçada de um bar fechado em uma madrugada qualquer. Namoraram durante alguns meses e então se casaram. Quando ela se deixava levar por essa ideia traiçoeira de que ela não sentia tanta falta de seu marido falecido, a voz ia adiante e a lembrava de como ele passava a maior parte do tempo naquele escritório, ouvindo aquelas músicas francesas, digitando naquele computador vermelho e olhando aquele jarro com as cinzas da tal Cibele. Se Ana sentia falta de alguma coisa, seria da vida que ela estava esperando ter com ele, e não da vida que eles tiveram, pois não tiveram tempo de viver qualquer coisa para sentir falta. Se Ulisses voltasse, ele voltaria para ela ou para a própria vida? Finalmente, a voz traiçoeira dentro dela fez a pergunta crucial.
       Mas, essa mesma voz, depois que a convencia dessa dura verdade, lhe sussurrava uma ideia de incentivo. Se houvesse uma forma de trazer Ulisses de volta, ele poderia conhecer Alexia, e Ana gostaria muito que eles se conhecessem. As obras literárias dele evidenciavam o quanto Alexia parecia com ele.
       Ana viu que a noite já estava caindo e lembrou que tinha uma apresentação agendada. Ia tocar piano para as crianças na escola. Guardou o livro na estante do escritório, junto com todos os outros do célebre autor Ulisses Alves II e foi se arrumar.
       Não quis colocar nada formal. Antes de toda essa história de ser casada, viúva, mãe, jornalista e etc, ela era Ana Diamante! A cantora mal sucedida, encantadora, livre e feliz. Sentiu o vento noturno percorrer suas coxas, seus braços e seu rosto, quando saiu para a varanda que dava para o jardim da frente da casa. Sentiu falta de seu cabelo comprido e sua franjinha cortada reta acima das sobrancelhas, e também de seu enfeite de cristais que usava no cabelo. Mas o vento brincou com seus cabelos curtos enquanto ela caminhava satisfeita evitando pisar nos esquilos que se aglomeravam no seu gramado. A porta da garagem abria lentamente, como que de propósito, para causar aquele efeito dramático de cinema, para revelar, bem aos pouquinhos, a linda moto de seu marido. Era uma daquelas motocicletas que é preciso andar com os braços lá em cima, "coisa de motoqueiro sexy" pensou Ana, e achou que seria mais um motivo para trazer seu escritor de volta, daria tudo para andar na garupa daquela moto com ele. Ir à algum lugar, quem sabe àquele mesmo bar onde se conheceram, "quando ele estiver aberto, dessa vez", pensou, sorrindo com inocência e esperança, "e beber uns drinques conversando, até nos expulsarem".
       Alexia, da janela de seu quarto, viu a mãe sair como um foguete de dentro da garagem, cantando pneu e deixando um rastro de fumaça e marcas negras do pneu na rua atrás de si. A menina achou a mãe o máximo dominando aquela máquina selvagem que rugia poderosíssima. A menina riu, levando as mãos aos ouvidos, por causa do barulho do veículo. Depois que a mãe estava fora do alcance de sua visão, a menina olhou para a garagem, afim de certificar-se de que a porta havia sido fechada. Depois disso, foi dormir.






"Não sei o que a senhorita pensa, mas, quanto a mim, estou cansado de ser eu mesmo. A senhorita não se cansa? Gostaria de ser uma outra pessoa, pelo menos por hoje?"  
(Charles Lutwidge Dodgson - trecho retirado do livro Eu Sou Alice, de Melanie Benjamin)


Nenhum comentário: